* Adriana Aneli (o sol da tarde)
Ler Susan Sontag me faz viajar por um mundo que não é meu… mas é como se eu fosse um asteróide a vagar no espaço e, de repente, entramos em rota de colisão. Gosto imenso de traçar paralelos entre as nossas vivências. Somos figuras tão diferentes. Ela gostava do barulho — de ter opinião a respeito de tudo — e eu prefiro a quietude… mas gosto de ter opiniões, principalmente a respeito das mulheres que leio…
Susan conviveu com um herói de guerra, desses com o peito cheio de medalhas… que foi ferido por uma granada e de quem herdou o sobrenome.
E eu passava as minhas férias de verão com um herói sem medalhas e adorava ouvir as histórias de um homem que havia travado suas muitas batalhas, das quais não se arrependia.
Eu tinha onze anos e nós dois estávamos sozinhos no velho casarão. Chovia forte e ele havia preparado duas tigelas de cereais com leite. Sentamos os dois, lado a lado… ele me ajudou a escalar a cadeira mais alta (o meu lugar favorito) e ficamos lá, a contar os trovões e a observar a maneira como a luz dos relâmpagos iluminava — de tempos em tempos — o cômodo, desenhando sombras temporárias pelo espaço.
Não me lembro porque estávamos sozinhos naquela noite, tampouco para onde tinham ido os outros adultos. Mas eu gostava quando éramos apenas eu e ele… na cozinha, no quarto da bagunça, na biblioteca ou na sua oficina, onde inventava formas incríveis.
Os sons da casa eram outros.
As cores das paredes, da mobília.
Ele me confidenciou que tinha coisas que não havia feito, em sua vida. Mas não lamentava, tampouco se arrependia. Dizia que as que tinha feito, compensavam tudo. Era o tipo de conversa que eu gostava de ter. Ele compreendia que eu, de uma forma toda minha, poderia levar uma vida solitária e foi para ele que contei em primeiro lugar, a respeito da minha decisão futura: cursar psicologia. Ele não demonstrou…
Enquanto levava uma colherada de cereal a boca, tentei pensar em todas as coisas que tinha feito. Mas ainda não tinha uma lista de grandes feitos, pequenos tampouco. Eu nem mesmo tinha uma lista. Ele achou graça e disse que ao chegar a idade dele, seria diferente.
E sorriu quando eu perguntei: e quanto tempo é isso? — eu nunca fui boa em somar dias-semanas-meses-anos…
Ele recuou a manga e me mostrou uma tatuagem no braço esquerdo; era antiga e estava apagada, meio borrada. Tinha sido feita nos dias de luta, quando fez parte da resistência. Era uma espécie de medalha… que ele exibia com orgulho. Eu confessei a ele que não teria coragem para tatuar a pele. Só de imaginar a agulha na minha pele, sentia enorme desconforto.
Ele se ofereceu para ir comigo, caso eu quisesse fazer uma, no futuro. E eu não tenho dúvidas de que o faria. Eu agradeci. Mas disse que não seria necessário. Seria o primeiro item na minha lista de coisas não feitas e das quais eu não me arrependeria.
Ele gargalhou para em seguida me avisar: só tome cuidado para essa lista não ficar muito grande e impossível de lidar.
Nesse novembro [entre outras coisas] vamos de #blogvember…
Aventuram-se em linhas diárias: Mariana Gouveia, Obdulio Nuñes Ortega,
Suzana Martins e Roseli Pedroso