* me despi de tudo desisti do arrependimento faria tudo de novo

* Adriana Aneli (o sol da tarde)

Ler Susan Sontag me faz viajar por um mundo que não é meu… mas é como se eu fosse um asteróide a vagar no espaço e, de repente, entramos em rota de colisão. Gosto imenso de traçar paralelos entre as nossas vivências. Somos figuras tão diferentes. Ela gostava do barulho — de ter opinião a respeito de tudo — e eu prefiro a quietude… mas gosto de ter opiniões, principalmente a respeito das mulheres que leio…

Susan conviveu com um herói de guerra, desses com o peito cheio de medalhas… que foi ferido por uma granada e de quem herdou o sobrenome.

E eu passava as minhas férias de verão com um herói sem medalhas e adorava ouvir as histórias de um homem que havia travado suas muitas batalhas, das quais não se arrependia.

Eu tinha onze anos e nós dois estávamos sozinhos no velho casarão. Chovia forte e ele havia preparado duas tigelas de cereais com leite. Sentamos os dois, lado a lado… ele me ajudou a escalar a cadeira mais alta (o meu lugar favorito) e ficamos lá, a contar os trovões e a observar a maneira como a luz dos relâmpagos iluminava — de tempos em tempos — o cômodo, desenhando sombras temporárias pelo espaço.

Não me lembro porque estávamos sozinhos naquela noite, tampouco para onde tinham ido os outros adultos. Mas eu gostava quando éramos apenas eu e ele… na cozinha, no quarto da bagunça, na biblioteca ou na sua oficina, onde inventava formas incríveis.

Os sons da casa eram outros.
As cores das paredes, da mobília.

Ele me confidenciou que tinha coisas que não havia feito, em sua vida. Mas não lamentava, tampouco se arrependia. Dizia que as que tinha feito, compensavam tudo. Era o tipo de conversa que eu gostava de ter. Ele compreendia que eu, de uma forma toda minha, poderia levar uma vida solitária e foi para ele que contei em primeiro lugar, a respeito da minha decisão futura: cursar psicologia. Ele não demonstrou…

Enquanto levava uma colherada de cereal a boca, tentei pensar em todas as coisas que tinha feito. Mas ainda não tinha uma lista de grandes feitos, pequenos tampouco. Eu nem mesmo tinha uma lista. Ele achou graça e disse que ao chegar a idade dele, seria diferente.

E sorriu quando eu perguntei: e quanto tempo é isso? — eu nunca fui boa em somar dias-semanas-meses-anos…

Ele recuou a manga e me mostrou uma tatuagem no braço esquerdo; era antiga e estava apagada, meio borrada. Tinha sido feita nos dias de luta, quando fez parte da resistência. Era uma espécie de medalha… que ele exibia com orgulho. Eu confessei a ele que não teria coragem para tatuar a pele. Só de imaginar a agulha na minha pele, sentia enorme desconforto.

Ele se ofereceu para ir comigo, caso eu quisesse fazer uma, no futuro. E eu não tenho dúvidas de que o faria. Eu agradeci. Mas disse que não seria necessário. Seria o primeiro item na minha lista de coisas não feitas e das quais eu não me arrependeria.

Ele gargalhou para em seguida me avisar: só tome cuidado para essa lista não ficar muito grande e impossível de lidar.

Nesse novembro [entre outras coisas] vamos de #blogvember…
Aventuram-se em linhas diárias: Mariana GouveiaObdulio Nuñes Ortega,
Suzana Martins e Roseli Pedroso

* Pode chover a qualquer hora e o sol surgir forte em minha manhã laranja,

* Mariana Gouveia (o lado de dentro)

Ao ler o poema escrito por Mariana Gouveia nas primeiras horas de céu azul e sol forte na manhã de hoje… fui revirar minhas coisas, como se fosse uma manhã de sábado. Eu troco os dias de lugares e isso não é novidade e como havia um feriado entre nós e lá fora a cidade adormecia em paz, foi fácil esquecer a terça em algum canto da pele.

Coloquei a chaleira no fogo e o verso ficou cantando na minha mente, competindo com a música da Rosa Linn que nessa semana ouço no repeat… Fechei os olhos e fui embora. Atraquei na primeira semana de aulas, na escola.

Estava quente e no céu poucas nuvens ziguezagueavam por cima dos prédios. Não choveria e isso me fazia suspirar pesado pelo caminho de asfalto que eu percorria de mais dadas com C., naquela hora cheia e que saberia que seria um caminho para os meus pés pelos próximos meses-anos e isso me aborrecia.

C., se esforçava para respeitar a lentidão do meu passo, que se arrastava contrariado. E eu inventava motivos para não andar. Encontrava folhas e pequenas pedras, que precisava recolher. Eu me distraia com o vôo dos pássaros e o movimento insano de alguns insetos. O meu olhar não queria perder nada.

E gostava de observar a maneira como o pé de C., equilibrava-se nos saltos. Às vezes, eu olhava para trás, procurando por rastros-nossos. Mas raramente havia. Quando chovia ficava qualquer coisa de onda nas poças.

Como o meu corpo fazia acrobacias… ela sorria ao me ajudar a equilibrar-me: procurando por rastros novamente? Eu gostava de ouvir essa pergunta. Era bom sabe-lá atenta às minhas esquisitices. Embora não fizesse ideia sobre como ela sabia certas coisas a meu respeito.

A minha sala de aula ficava perto da escada que levava para o andar de cima, onde os mais velhos estudavam. Era a primeira ou a última, dependendo de quem fosse questionado a esse respeito.

C., entrou comigo no segundo dia. Quis saber onde eu me sentava e eu apontei para a mesa perto da janela e avisei que eu não tinha uma dupla e ela não ficou surpresa ao saber disso. O observou a sala numa espécie de varredura. Eu conhecia bem aquele olhar. Certificava-se de que as coisas todas estavam onde deveriam estar. E como não identificou perigo, se despediu. Antes de ir… disse em meus ouvidos: se ficar impossível para você, lembre-se do único lugar em que nada-ninguém pode alcançar.

Trocamos sorrisos cheios… E eu lutei com todos os meus músculos e nervos do meu corpo para não me levantar e ir embora com ela. Mas ali era o meu lugar no mundo — todos os dias, durante cinco intermináveis horas. Uma tremenda perda de tempo. Aulas de risquinhos, de contação de histórias bobas e desenhos monótonos.

Susan Sontag usou a palavra inquieta (restless) para descrever a sua infância e até ler a sua entrevista, não tinha pensado a respeito disso. O meu olhar avançou paisagens, alcançou janelas abertas — pequenas telas de Hopper. A única palavra que me veio à mente foi: insuportável.

A chaleira apitou e eu interrompi o navegar… abri a porta do armário, peguei a caixa e escolhi o saquinho, repetindo verso-música numa bagunça particular. Rindo da minha rebeldia…

No terceiro dia de aula, eu comecei a comparar os colegas daquela turma boba, com os meus vizinhos. A diferença é que eu não podia evitá-los ao fechar a porta…

Mas foi divertido posicionar cada um deles nas casas da minha rua e imaginar como seria a vida deles. Comecei a escrever minha segunda leva de contos — todos de horror, é claro. E a minha leitora divertia-se ao ir me buscar e tentar adivinhar os personagens-pessoas com quem convivia naquele espaço-tempo perdido de vida.

Nesse novembro [entre outras coisas] vamos de #blogvember…
Aventuram-se em linhas diárias: Mariana GouveiaObdulio Nuñes Ortega,
Suzana Martins e Roseli Pedroso

As leituras de 2020 — o ano que não acabou…

Fiquei a pensar nos livros lidos em 2020 durante todo o dia de ontem, na — inútil — tentativa de escolher a melhor leitura e acabei naufragando em dúvidas. O conto de Aia (releitura) se destacou, mas não foi o melhor e admito que me incomoda o rumo que a distopia escrita por Atwood tomou. Outras releituras destacaram-se… os irmãos karamazov reverberaram forte — uma vez mais — pelas paredes. Li trechos inteiros em voz alta enquanto ia de um cômodo para o outro, em meio a pesados goles de chá.

Esse verme sou eu. E isso foi me dito ao ver- me. Tudo isso foi dito
especialmente sobre mim. Nós os Karamazóv, todos nós somos esse verme,
inclusive você, meu anjo: esse verme vive em você, já é você, faz
nascer tempestade em seu sangue!

Lembrei-me da última vez em que fui visita em uma Livraria. Havia acabado de me mudar… Os livros ainda estavam dentro das caixas. Era véspera do caos na cidade-estado-país-mundo. Poucas pessoas cobriam o rosto com máscaras e parecia mesmo um exagero…
Fomos os três à Livraria da Vila para buscar uma encomenda e voltei de lá com meia dúzia de livros. Dentre eles, a nova edição de o quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus — leitura forte que escancarou todo o privilégio por ser mulher-branca-classe-médica que pode fazer um café e se sentar na varanda para espiar janelas, ruas e se reinventar enquanto o caos impera por toda a parte, como num filme apocaliptíco.

“Antigamente eu cantava. Agora deixei de cantar, porque a alegria afastou-se para dar lugar a tristeza que envelhece o coração”. […] (p. 150). – Carolina Maria de Jesus

Li e reli Silêncio na era do ruído, de Erling Kagge… em busca de paz e sossego em meio as notícias insanas que pipocavam a todo o momento. A leitura me permitiu acertar os ponteiros do corpo com o do lugar que foi minha redoma pelos meses seguintes.

Quando chega a hora, é sempre pouco o necessário, e esse pouco o coração já sabia.
Erling Kagge

De livro em livro… reli a nova edição de 1984 que me fez pensar nesse velho-mundo-novo em que se proíbe — certos —, livros. O argumento é antigo. Está gasto e ainda assim, circula de boca em boca… feito fumo. Listas de livros foram distribuídas por escolas e chegou até mim antes do mundo caducar por causa de um mísero vírus — uma ameaça invísivel que para mim, parecia menos perigosa que o próprio ser humano. Estupefata… decidi reler alguns títulos apenas para contradizer a turba. Macunaíma foi o primeiro. A revolução dos bichos (que mudou de nome recentemente) e Admirável mundo novo do senhor Huxley vieram em seguida.

Se uma pessoa procedeu mal, arrependa-se, faça as reparações que puder e trate de comportar-se melhor na próxima vez. Não deve, de modo nenhum, pôr-se a remoer suas más ações. Espojar-se na lama não é a melhor maneira de ficar limpo.
Aldous Huxley

Empilhei alguns dos livros lidos… na tentativa de tecer uma possível resposta a pergunta feita por um leitor que frequenta esse blogue. Sem sucesso. Respirei fundo, apertei o botão da máquina e espiei a pilha. Questão de Ênfase, de Susan Sontag é um dos melhores livros da autora. É cortante-azedo-ácido e cheio de opiniões severas sobre pessoas-mundos. É uma ótima leitura. Só para garotos, de Patti Smith é excelente para pensar na vida que não é nossa, mas que passa por nós. Meus desacontecimentos de Eliane Brum é um diálogo, como se a autora me escolhesse para trocar correspondência. Corredores, de Mariana Gouveia me levou a reler Diário do hospício, de Lima Barreto. Ambos tratam de um mesmo elemento: a loucura… E em tempos de insanidade, permitiu medir a minha própria temperatura.

Batalha naval urbana

Fiquei a observar as janelas dos prédios ao longo da Avenida… nesse fim de tarde sem sol. As luzes começaram a se acender… uma a uma, como de costume. E eu fui contando-as, como se fossem livros na prateleira — observando os títulos-autores-orelhas. E comecei a pensar nelas como habitat natural de tantos personagens não-escritos.

Reparei na figura de uma senhora com o olhar preso às nuvens em movimento de ventos lá no alto — talvez chova nessa noite. Ou estaria ela a pensar na insanidade de nosso tempo em que um vírus nos trancou dentro dessas jaulas projetadas por arquitetos que nada sabem sobre nós?

Outro prédio… outra cena. Um rapaz prepara a câmera, a sala. Encontra o melhor ângulo… se preocupa com a luz para uma filmagem caseira-ou-quase-profissional. Vivemos o tempo das lives… essa outra janela aberta — para uma realidade paralela.

Respiro fundo e mudo de prédio… São tantas janelas fechadas. Tantos de nós guardados em caixas. Fico em silêncio a observar as edificações com seus formatos-cores-alturas distintas e concluo: prédios são como prateleiras… e a cidade é uma espécie de Biblioteca.

Cada um desses metros quadrados escondem narrativas comuns-impossíveis-inéditas-fantasiosas-misteriosas-secretas. Na semana passada alguém saltou para o seu fim no prédio ao lado — vigésimo terceiro andar — e virou notícia nas bocas famintas. Tanto foi dito, menos o obvio. A persona fugiu-escapou da solidão de suas próprias paredes. Mas, isso é algo que ninguém ousa dizer para não perturbar a própria matéria.

Há de tudo nessas tenebrosas construções urbanas… que eu observo desde a infância. Gosto imenso de imaginar as formas de vidas labirínticas encarceradas em cada um dos quadrados que o meu olhar alcança e converte naturalmente em página que será lida, traduzida e interpretada… ou apenas devolvida a prateleira.

Volto-me para dentro… me aproximo dos livros, sentindo-os na ponta dos dedos. Puxo o que está por cima — re-leitura recente. A vontade radical de Susan Sontag, que esteve em minhas mãos… em cima da mesa, debaixo do travesseiro — até domingo-passado. Busco pela página 39… essa soma particular nesse ano perturbado. Não chego a ler. Viajo lugares, sem me mover. De um lugar a outro, em poucos segundos, como na canção que sei cantarolar em italiano. E penso no que escreveria Susan Sontag acerca desse mundo insano…

Ela que sempre foi tão incisiva-aguda… entregou suas opiniões bem pautadas e polemizou tantos temas. Não ficaria em silêncio, como eu, que acuso cansaço diante de tantas coisas rasas. Estou cansada de ouvir frases prontas “ficaremos melhor depois que tudo isso passar”. É como engasgar em meio a um pesado gole de chá.

Fecho o livro, deixando-o no canto do sofá, para mais tarde e volto a janela para me distrair com a realidade, repetindo a brincadeira com o prédio da frente… janela fechada!

A primeira leitura do ano…

As idéias perturbam a regularidade da vida
Susan Sontag

Ao ler-te no meio dessa tarde… me lembrei de quando comprei o diário de Susan Sontag. Era apenas mais um livro numa bagunçada prateleira da Livraria Cultura do Conjunto Nacional que, naqueles dias, ainda era cenário propício a uma leitora — like me.

Havia tempos que não consumia a literatura aguda de madame Sontag — com quem dialoguei incansavelmente durante os primeiros anos de minha segunda década de vida — devorando-a sem restrições.

Com o livro em mãos… comecei a leitura ali mesmo! Pulei o prefácio… escrito por David Rief — filho da escritora e pousei imediatamente em 1947, conduzia que fui pela primeira anotação de Susan e de lá para a minha segunda década de vida, num salto — como se passasse por uma porta mágica.
Voltei ao ‘nosso discurso’ silencioso-quieto-morno de leitora-autora. Ouvi sua voz de mulher-firme-forte-às-vezes-fraca-frágil-alquebrada-contraditória. Me vi em seus círculos… a participar de suas trocas. Provei de sua raiva-dor-medo. Me envolvi com suas mulheres. Me vi de mãos dadas com seu menino-filho-estranho por caminhos vários. Fui de país em país, tomando nota das minhas primeiras-segundas impressões… e reconheci o sentimento ao pisar o chão estrangeiro.

A última página da história da vida de Susan… foi escrita no dia 28 de dezembro de 2004. Não sei  onde estava… o que fazia. A notícia de seu falecimento não chegou nessa data… veio mais tarde — no ano seguinte através de uma pequena nota de jornal, lida a caminho de algum lugar — a bordo de um Comboio.

Era uma nota rasa-pequena — rodapé que quase ninguém lê. Não dei importância para o que lia, consequentemente não fiz a conexão entre o nome e a pessoa-personagem. Tinha me distanciado da literatura e mergulhado em outras realidades-autores…

Ao ler aquela breve-nota, esquecida ali… foi como saber o dia, a hora e o local da missa de sétimo dia de um personagem qualquer.

Enquanto reviro minhas lembranças… penso no instante em que tive o prazer de estar sob o julgo do olhar da escritora. Era Primavera em Nova Iorque. Fazia minha primeira viagem para as terras do tio Sam com um mapa secreto de lugares — com base nos livros e filmes que passaram pelo meu olhar —, em que queria estar. E aquele café na parte ‘mais escura’ da cidade era um deles… de frente para um velho hotel, onde residia G.T.S — com quem Sontag adorava discutir-discordar.

Tomei um susto ao vê-la se sentar no balcão, bem ao meu lado. Demorei a reagir e tentei ser o mais natural possível. Se tive sucesso? Impossível saber.  Mas eu tentei não incomodá-la indo me sentar em outra parte do café… um canto de onde poderia observá-la, como se fosse desenhá-la mais tarde.

A idade estava bastante visível na pele branca-pálida da Mulher-escritora-doente que exibia contornos sérios-pesados-rudes. Ela era linda-e-horrível. Aparência fechada, sem disposição alguma para diálogos com estranhos. Parecia mal-humorada.  Me encantei com os pesados goles — lentas tragadas — de café.

Não foi nada fácil estar a míseros centímetros daquela entidade que influenciou minha escrita-fala-movimentos. E sabê-la ausente de nós ainda me causa alguma estranheza. Não parece certo — como se alguma coisa no universo estivesse fora do seu devido lugar.

E, hoje, nesse segundo dia do ano, coloquei a água para ferver e fui até a prateleira, onde Susan vive atualmente… escolhi começar por seu primeiro diário — uma leitura primeira, como se regressasse ao café para um gole-encontro-diálogo… pontuando as minhas incertezas amadoras enquanto aguardo pelo que ainda falta publicar — como se a mulher ainda estivesse cá, entre nós, a escrever…

Contra a interpretação, Susan Sontag

Um dos primeiros espaços urbanos que visitei ao chegar a São Paulo, em meados de dois mil e dois foi um Sebo… Gosto imenso desses cenários urbanos-contraditórios onde se pode navegar por entre prateleiras cheias, pilhas e mais pilhas de livros em meio a uma desorientação peculiar. Esses espaços possuem estruturas curiosas que desafiam a gravidade e os nossos mais secretos temores.

E foi em um Sebo que garimpei o livro que estou a ler nesta semana insana contra a interpretação, de Susan Sontag… impresso por aqui no outono de 1987 — com tradução de Ana Maria Capovilla e publicado pela L&PM.

A leitura me deixou inquieta… me obrigou a pensar no perigo que reside na interpretação. É fato que ao ler, trago do conteúdo oferecido pelo Autor… tornando-o meu.  Um conjunto de informações, opiniões e a maneira como dissolvo tudo isso… resulta em compreensão ou incompreensão.

Tudo isso depende da minha carga emocional, dos meus níveis de consciência e de como reajo à realidade, ao mundo… e suas pluralidades.

Estamos cada vez mais dispostos a opiniões definitivas (eu as detesto, admito) onde se aponta para isso ou aquilo a partir do nosso próprio umbigo. Há premissas frágeis em toda a parte. Frases prontas para uso que se repetem de boca em boca como se não fosse coisas dissolúveis.

Na semana passada o burburinho foi acerca do que é Arte — a partir de conceitos pessoais, com uma gama de preceitos e preconceitos onde certo e errado tem enorme importância. E a partir disso se estabelece a fórmula: quais cores-elementos-conjunto-de-símbolos usar para agradar o olhar ou o sentimento de determinada pessoa?

A mostra Queermuseu, em Porto Alegre foi fechada um mês antes do previsto porque não agradou a um determino grupo de pessoas, que não entenderam como sendo Arte o que ali se exibia. Muitos não viram e agiram como o signore Monteiro Lobato, autor do famoso artigo “paranóia ou mistificação” onde vociferou contra a exposição de Anita Malfatti, criticando seu estilo, cor e modernismo, considerado pelo conservadores da época, uma ofensa ao critério estabelecido de Arte — um hábito cada vez mais comum nesse tempo de: não vi e não gostei, inaugurado pelo autor de livros infantis.

A Arte de nosso tempo tem fugido da interpretação… impondo legendas, de maneira a conduzir o indivíduo a entender o que vê-pensa-sente — marionetes controladas por fios invisíveis. Se em outro tempo era necessário instigar o pensamento, tirar a criatura do lugar-comum, de maneira a fazê-la perceber o outro, o mundo além do próprio umbigo…  O que se pretende nesse contemporâneo existir é o contrário.

Eu respiro fundo incontáveis vezes e observo a turba cada vez mais violenta, menos humana e mais coisa. Não é nada fácil compreender os níveis de consciência — cada vez menores — o abandono da poesia, do lirismo e a imposição de uma regra normativa: a Arte enquanto fôrma a criar uma única forma, que agrada pequenos grupos — específicos — que não querem ser questionados-criticados-incomodados… e estão satisfeito com o mesmo velho ontem e suas rotinas pré-estabelecidas, citando clássicos que não leram ou obras de museus nunca vistas e que agora servem apenas para serem fotografadas. Há Museus no mundo que se adequaram ao instamangrável.

É aquela velha máxima —  repetida exaustivamente por uns e outros —  uma imagem vale mil palavras. Eu discordo e sei que Susan me acompanharia nesse pensamento. Uma imagem quando bem descrita por quem escreve é valiosa e não desbota, não se rasga, não se perde. A imagem é apenas o que é… um retrato estático que vai esmaecendo gradativamente até nada ser. Mas uma frase bem escrita… fica porque rompe com o tempo e todos os seus elementos.

Ler  Susan Sontag é sempre um desafio porque me faz questionar a realidade, o lugar e os meus próprios conceitos, nunca definitivos… Ler seus escritos de ontem atingem — como se fosse uma flecha certeira, em pleno voo — o tempo de hoje, do qual a autora não faz parte… A ensaísta, no entanto, parece ter antevisto esse cenário espalhafatoso, a partir de seu vanguardismo, digo de admiração e talvez por isso, tivesse tanto apreço pela fotografia, consciente de que cada tempo tem o seu retrato…

Numa cultura cujo dilema já clássico é a hipertrofia do intelecto em detrimento da energia e da capacidade sensorial, a interpretação é a vingança do intelecto sobre a arte.
Mais do que isso. É a vingança do intelecto sobre o mundo. Interpretar é empobrecer, esvaziar o mundo — para erguer, edificar um mundo fantasmagórico de “significados”. É transformar o mundo nesse mundo. (Esse mundo! Corno, se houvesse algum outro.) O mundo, nosso mundo, já está suficientemente exaurido, empobrecido. Chega de imitações, até que voltemos a experimentar de maneira mais imediata aquele que temos. (…) O que importa agora é recuperamos nossos sentidos. Devemos aprender a ver mais, ouvir mais, sentir mais. (…) Nossa tarefa não é descobrir o maior conteúdo possível numa obra de arte, muito menos extrair de uma obra de arte um conteúdo maior do que já possui. Nossa tarefa é reduzir o conteúdo para que possamos vera coisa em si. (…) A função da crítica deveria ser mostrar como é que é, até mesmo que é que é, e não mostrar o que significa.”

Susan Sontag

o luto que não vivi…

Ao ler-te no meio dessa tarde… me lembrei de quando comprei o diário de Susan Sontag. Era apenas um livro — em meio a tantos outros — esquecido numa prateleira da Livraria da Vila… no qual resvalei e fiquei. Havia tempos que não consumia a literatura de Sontag — com quem dialoguei durante a minha meninice-aguda.

…comecei a ler as páginas ali mesmo — uma depois da outra, entre pesados goles de cappuccino — e me vi a percorrer a vida-realidade da pessoa-personagem que era para mim. Voltei ao ‘nosso discurso’ silencioso-quieto-morno de leitora-autora. Ouvi sua voz de mulher-firme-forte-às-vezes-fraca-frágil-alquebrada-contraditória. Me vi em seus círculos… a participar de suas trocas. Provei de sua raiva-dor-medo. Me envolvi com suas mulheres. Me vi de mãos dadas com seu menino-filho-estranho-e-conhecido. Fui passo a passo pelos países que visitou…. E sei como se sentiu quando a doença atingiu seu ápice, acusando metástase e determinando uma espécie de ponto final, do qual não se pode escapar.

A última página da história da vida de Susan foi escrita em 28 de dezembro de 2004. Tento, enquanto escrevo, lembrar do lugar onde estava… o que fazia. Nada me ocorre. Sei, no entanto, que a notícia não chegou nesse dia… Soube no ano seguinte, através de uma pequena nota rada-pequena no rodapé de um jornal, lida a caminho de algum lugar. Como um sopro dado na chama de uma vela… e pronto: apagou-se.

Não dei importância no momento… Foi como saber da missa de sétimo dia de um estranho a ser rezada numa das muitas capelas existentes no mundo.

Enquanto degusto mais um pesado gole de café… recordo o instante em que tive o prazer de estar sob o julgo de seu olhar negro como a noite e frio como o inverno. Era Primavera em Nova Iorque. Primeira viagem para as terras do tio Sam. Cheguei dois dias antes do combinado. Tinha um mapa secreto de lugares — com base nos livros lidos e filmes assistidos —, para visitar. E o Café na parte ‘mais escura’ da cidade era um deles… de frente para um velho hotel, onde residia G.T.S — com quem Sontag adorava ‘discutir-discordar’. Queria fotografar uma daquelas janelas e ocupar o mesmo banco que aqueles seres…

Tomei um susto ao vê-lo no balcão, bem diante dos meus olhos que a esculpiram por inteira. Quase cutuquei a derme para ter certeza da realidade. Demorei a reagir e vislumbra-la enquanto pessoa em um café. Me lembro de seu quase não sorriso. A maneira como povoou o seu cenário preferido, na cidade. A idade visível em sua pele branca. Sua fala-pouca… idiomas-muitos… silêncio-imenso e aquela tosse incansável. Contornos pesados-rudes. Ela era linda-e-horrível. Aparência fechada. Parecia mal-humorada. Olhar certeiro-definitivo. Me encantei com seus pesados goles — pareciam lentas tragadas — de café.

Que mulher! — pensei, sem dizer palavra. Não foi nada fácil estar a míseros centímetros daquela entidade que influenciou minha escrita-fala-movimentos. Gostava da fúria que percebia em suas frases e me esforcei para imitar. A maneira como construía suas frases era fascinante… mas nunca coube dentro da minha escrita. Não tenho tantas opiniões a dar a respeito das coisas que experimento. Mas é maravilhoso que alguém o faça e que resvale em mim… A fúria ao escrever era algo que eu desejava para mim, mas não há espaço o bastante para tal…

Sabê-la ausente ainda me causa alguma estranheza, afinal, seus livros se acumulam ao meu redor. Teço intermináveis diálogos com ela dentro das noites de sábado. Pontuo as minhas incertezas amadoras com seus ensaios malditos… e ainda espero pelo lançamento do que ficou por publicar. Dois diários já foram… falta o último!

Tempestade a vista…

 “Um escritor é, antes de tudo, um leitor […]
É pela leitura, mesmo antes de escrever, que
me torno parte da comunidade — a comunidade da literatura —
que inclui mais escritores mortos do que vivos”.

Susan Sontag

Com a vida toda organizada — as frases no lugar certo, o humor em seu estado cítrico — nada acontece a minha volta. Olhar vazio. Pulsar tranquilo. Mãos frias de gestos… Respiro fundo e admito que preciso do caos: pilhas de livros, papéis amassados pelo chão, cadernos com páginas arrancadas e canecas sujas de café na pia…

Eu não fui forjada para a tranquilidade. Sou uma tempestade que precisa do mar e seus movimentos arredios de ondas em direção a uma praia qualquer. Eu sei que sou feita de fases — como a Lua! E agradeço a poeta Cecília por seu poderoso verso: tenho fases de ser tua, tenho outras de ser sozinha

Mas há fases de uma paz aterradora! Um silêncio de pele, por dentro. E ass coisas todas nos seus devidos lugares. Isso acaba comigo. Não sei o que fazer com as mãos, os pés… o corpo todo. Entro em modo de extinção!

Digo com alguma frequencia que não tolero multidões. Mas é disso que necessito… de uma turba furiosa marchando na contramão dos meus passos para que eu encontre alguém para observar-tragar e sorver em pequenos goles. Preciso de barulho, do tumulto… do outro com suas vivências atadas a um corpo preso por fios para que eu possa manipular os movimentos todos, tornando-os meus.

A primeira vez em que assisti a uma espetáculo de marionetes — na infância — me encantei com a engenhosidade dos bonecos. Não prestei atenção as falas ou no que peça-texto. Estava entretida com os bonecos e na forma como eram manipulados. As outras crianças não enxergaram os fios. Acreditaram que os bonecos eram encantados. E de certa forma… eram.

No mesmo ano, assisti The sound of music e me encantei com a cena em que um teatro de bonecos controlados pelas crianças von Trapp e pela jovem noviça. Esqueci do que era filme. Assisti a cena um sem-fim de vezes, aprendendo-os, como se eu estivesse no controle dos fios.

Aqui, traço um paralelo entre a minha escrita e a manipulação de marionetes. Ao espiar as pessoas, antes de escrevê-las, eu as observo-aprendo e as manipulo no papel. Mas para que isso aconteça, necessito de todo o resto… o Caos e suas multidões de ninguém, onde uma única figura se destaca, crescendo aos meus olhos… oferecendo-me os seus fios.