É uma espécie de lembrança que ecoa em minha mente e não sei dizer se é coisa minha ou se é coisa emprestada — herança de frases ditas em voz alta.
Estou nesse quarto de piso solto a ranger debaixo da sola do meu calçado e há num canto essa pequena estante com livros velhos. A cama está desfeita e o lugar cheira a morte. A enorme veneziana é aberta com dificuldade. A gelosia e as dobradiças gritam esganiçadas. Lá fora uma avenida cinza, com canteiros mortos ao centro e postes altos com lâmpadas de mercúrio… uma espécie de tela impressionista.
O quarto não recebia luz há tempos… e o cenário iluminado é ainda pior. Dá para enxergar tudo que a opaca luz da lâmpada presa a um fio que escorre do teto.
Há uma cadeira de rodas no canto, um penico de louça debaixo da cama e um apoiador de soro do outro lado. A maior parte dos móveis foram retirados, restou a cama e uma mesinha… lotada de medicamentos abertos-espalhados e logo abaixo uma bíblia, ao lado de um escapulário, um rosário e um santo… que a alguém diz ser Antônio. Nada interessa ali… após meticulosa inspeção, deixam o lugar.
Interesso-me pela pequena estante… que está trancada. Sou avisada que a chave esta na parte de cima. Passo a mão e além de toda a poeira acumulada dos últimos anos, encontro a miniatura de metal. Os livros estão em péssimo estado… Poemas de Alphonsus Guimarães, Camões e Castro Alves — o favorito do dono do quarto. Puxo o exemplar e a capa se desfaz ao meu toque. Espirro pela primeira vez…
Tento folheá-lo, mas é impossível… a costura não segura mais as páginas e as páginas do livro se dissolvem no ar, indo ao chão, como se fosse areia a escoar pelos meus vãos. Fico quieta-imóvel e sou trazida de volta pela mulher com suas pernas de aço. Trocamos olhares e ela parece saber o que eu sinto. Avisa que irá buscar a vassoura, uma pá e não quero que ela faça movimentos desnecessários. Mas ela me impede… Entendo o seu gesto. Não precisa que alguém sinta pena de sua condição… respiro fundo e tento lidar com o que é sentimento em meu íntimo.
Sigo sem saber se é coisa minha, alheia ou emprestada de alguma narrativa e na falta de certezas, vou buscando os exemplares… um por um. A maioria vai para uma caixa e depois direto para o lixo. Puxo mais um e me deparo com a preciosidade de Caeiro — versos simples escreveu esse homem. Ouço a voz ecoar do passado que trago dentro… Ele repete os versos, como um canto de refrão conhecido.
E a mulher de pernas de aço pede que eu leia para ela. Com a voz embargada e os olhos cheios, eu tento… soluçando entre versos. Respiro fundo e minha voz e a do homem daquele quarto se misturam entre tempos. Somos uma mesma matéria… eu feita de vida e ele de morte.
O livro — estranhamente preservado — em meio a tantos outros carcomidos por tempo e pelas traças vai para o meu bolso. No outro cômodo… na sala, os herdeiros brigam por causa de outras coisas. Penso em perguntar se posso ficar com o exemplar… mas desisto quando ouço os desaforos crispados.
A mulher de pernas de aço liga a velha sonata e coloca o vinil favorito do homem para girar e se emociona com uma lembrança. Era a música favorita dele… tango de Gardel: quando os parentes brigarem por causa da esmola que tu vais deixar. Espirro mais uma vez… e me deparo com um pequeno livreto, de capa artesanal, amarrado com uma cordinha. Tão fino… Puxo com cuidado. Não está estragado… as traças não o quiseram.
O cuore dá um pulo dentro do peito… volto no tempo. Removo as amarras e dou pela caligrafia infantil… a missiva diz o que é: um livreto com poemas de Emily Dickinson confeccionado para ele. O mesmo número de poemas publicados pela autora-poeta em vida, mas a escolha foi feita pela menina… Apenas os favoritos dela!
A mulher com suas pernas sustentadas por uma estrutura de aço… se aproxima e sorri. Estica as mãos e eu entrego a ela. Ainda tem alguma dificuldade em ler. Gagueja entre uma ou outra palavra… mas um verso inteiro brota de sua boca… ela me entrega a caixa e pergunta se pode ficar com o livreto? Acho que tudo que se passou é coisa dela, mas passou a ser nossa.
Daquele lugar, pouca coisa me interessava… os livros, a velha gravata vermelha, a sonata e alguns discos: tudo acomodado dentro de uma pequena caixa. Menos o velho carrilhão… Ela avisa que não conseguiu salvar. Acabou com o relojoeiro da cidade… trocado por duas ou três notas, que é tudo o que importa para aquela gente na sala.
Parece que eu conheço esse carrilhão… é como se fosse o mesmo que havia aqui, alguns tempos atrás.