7 | a força do não

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Calcei meias marrons e vesti um blusão de algodão… depois de tomar um banho com água esquentada no bule. Tínhamos chuveiro à casa, com água quente, mas durante as férias na casa da nona, havia descoberto o prazer da água aquecida com ervas maceradas no fogão à lenha. A nona despejava sobre minha cabeça a água, que escorria feito chuva por todo o corpo. E sempre que era sexta — naquele tempo eu media os dias da semana através dos rituais que praticava — eu pedia banho de bule.
E lá fomos as duas — no pós banho — ocupar os degraus, ler livros e esperar pelo babo. Enquanto isso, ela lia contos indianos, sua leitura favorita que, durante muitos anos, foi a minha também…
C., não demorou para reparar em minha aversão por multidões e perceber o meu ‘truque’ para me ausentar das aulas-escola-convivência. Quando na companhia dos meus, eu era faceira, alegre… mas, bastava um estranho se aproximar que tudo mudava. Eu me encolhia. Retrocedia a condição fetal. Ela nunca me obrigou a ir à escola e comumente me deixava ficar à casa, com livros e cadernos e músicas e a mesa da cozinha, onde me servia uma deliciosa xícara de leite caramelado. Mas, sempre ressaltava a importância dos estudos…
No colégio, eu era a menina do canto — sempre mal humorada, calada e sensivelmente irritada. A primeira pessoa a reparar nisso foi minha professora de gramática, que também dava aulas de inglês e literatura contemporânea. Era uma mulher excepcional, com quem travava demorados diálogos na Biblioteca… sobre poesia e línguas estrangeiras. Com ela eu aprendi Borges, Campos, Bishop, e tantos outros. E, ingenuamente, lhe apresentei Pizarnik, Dickinson, Eliot e Baudelaire.

Não tínhamos a consciência de nossas idades.
Ela era apenas a professora… e eu a sua aluna.

Minha infância foi comum para os meus padrões de existir. Nunca me faltou atenção, cuidado, compreensão. Nossa família era tradicional… tive um pai e uma mãe, um punhado de tios e primos, as nonnas e os nonnos com suas nacionalidades. Fazia nossas refeições na mesa da cozinha porque só usávamos a da sala quando tínhamos visitas. Adorávamos nos sentar à mesa para tagarelar as nossas horas do dia e rir das nossas bobagens. Também gostávamos de provar do sucesso de cada um. E as descobertas…
Certa vez, contei a eles que tinha percebido que a casa no fim da rua tinha mudado de cor. Não sei o motivo, mas todas as casas da rua onde eu cresci tinham a mesma cor… até então. Fomos os três até lá… conferir a novidade. Meus pais trocaram olhares marotos e sorriram um para o outro. E eu só viria a entender a razão disso, quando outra casa mudou de cor e depois outra e mais outra…

A vida é simples assim… basta que um seja diferente.
Mas nem tudo eram flores…

C., era uma mulher severa-exigente que adorava cruzar os braços a frente do corpo e levantar a sobrancelha esquerda. Previsão do tempo para esse instante? Tempestades isoladas — diria a moça do canal cinco.
Antes de sair de casa ela repetia sua lista de recomendações: ‘não olhe outra pessoa se ela estiver a comer. Não me peça nada no mercado. Não solte da minha mão. Não interrompa a conversa dos adultos. Não aceite nada que lhe for oferecido, apenas agradeça. Seja gentil com todos, mesmo com os que não forem gentis com você. Não mastigue de boca cheia. Não repita tudo que lhe for dito. Não feche a cara, o tempo. Não faça pirraça. E o mais importante: se eu disser não é não… e não quero dizer não duas vezes. Mas se eu tiver que fazer isso, teremos uma conversa séria ao chegar a casa. Estamos conversadas?”
A tal conversa séria nunca aconteceu… mas eu nunca me senti confortável para confrontar aquela Dama que disse meia dúzia de nãos, mas o fez com os olhos, os dedos, os braços… o corpo todo.

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

3 comentários em “7 | a força do não

  1. Engraçado que a palavra que mais ouvi e que mais reproduzo é o “NÃO”. É como vicio de linguagem. O não causou efeitos devastadores em mim, mesmo que não me tenha faltado nada na infância, adolescência ou agora. Me tornei muito rígida com os outros e mais ainda comigo… 😦
    texto maravilhoso ❤ bjos!

    1. Tbm sempre fui uma garota timida na escola e aquilo me afetou um pouco, mas hoje estou melhor.
      O não é tão poderoso ne? Quando minha mãe falava isso na minha infância também sentia um certo temor e até evitava essa palavra.
      Texto maravilhoso ❤

  2. Quase não recebi “Nãos” em minha infância e adolescência. Eu sempre precisei de pouco e pouco nós tínhamos. Absolutamente consciente disso, não me lembro de fazer pedidos extravagantes para a Dona Madalena. O meu receio-quase-certeza é que ela fizesse de tudo para atendê-los.

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)

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