Passa das quatro, o céu está nublado e a cidade sem movimentos, é um dia frio… as horas avançam em pares e a tarde se perde dos meus olhos. As preces crescem nas janelas que os meus olhos alcançam. Tenho essa mania — desde a infância — observar esses espaços onde vez ou outra um rosto se deixa emoldurar…
Não é curiosidade o que me ocorre-move. Eu não tenho apreço algum pela vida alheia. É qualquer coisa cinematográfica — roteiros que se desenham na imensidão do ar. Como espiar uma tela de Hopper na parede de uma galeria-museu. Atravessar o olhar do artista ou apenas alcançá-lo…
E com essa sensação de filme que se escreve no verso da folha… permaneço em pé-imóvel, com a xícara de chá em mãos. Vasculho possibilidades. Tantas vidas por um fio. Formas de silêncio inquisidor. A última volta do ponteiro… tic tac.
Uma vida urbana captura o meu olhar. Um veglio signore no prédio da frente. Quinta janela no canto esquerdo dos meus olhos. Ele caminha pelo quarto com alguma dificuldade. Há um andador ao lado da cama e uma enfermeira vigia o que lhe resta de vida. Lhe entrega pontualmente os medicamentos. Se em algum dia a sua vida foi uma desordem, hoje cumpre as horas marcadas.
Os cuidados não agradam… ele ralha-resmunga. E se pudesse fugiria dali. Está cansado-e-sem-forças para mais uma batalha — a essa altura da vida. Ele recebe um copo com água em uma das mãos. Respira e atira contra a boca um punhado de comprimidos. Um gole de água e pronto.
Ele é tão submisso… seu olhar vasculha a paisagem como fosse sua última noite. Um sono que respeita a morte e o que foi vida… e que hoje é apenas dor pessoal. Se encolhe num gole raso de ar. Já não tem mais disposição para grande feitos-somas — não precisa mais do tudo. Recorda a si. Tempo anterior. A força dos músculos-nervos. Tudo tão frágil. A coluna dobrou e não volta mais para o lugar. Recorda os dias quentes-febris. A juventude e os excessos. Levanta a cabeça e lamenta não enxergar mais as estrelas. É apenas imensidão escura, embaçada. Nem os óculos lhe devolvem as paisagens roubadas. Faz anos que tudo virou um grande borrão.
Nos encontramos — repentinamente — dentro de um mesmo instante. Sinto vontade de sorrir-acenar… dizer “estou aqui”. Mas, o único gesto é dele… fecha a cortina e o filme se encerra… mas eu permaneço dentro da mesma cena. Avanço e retrocedo um sem-fim de vezes. Certos filmes não se encerram ao subir das letrinhas apressadas. O livro nunca chega ao fim quando o fecho.
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Que post maravilhoso.
Amo as coisas que escreve ❤
Amo dias nublados.
Bacio 😉
Olá ♥
Eu amei o post, às vezes eu gosto de observar as pessoas, parece que entramos no mundo delas 🙂
bjo
Sou apaixonado pelo trabalho do Hopper. Escrevi microcontos baseados nas telas desse artista.
Somos dois apaixonados, então.
Gostaria de ler-te…
Claro, depois escrevo um dos contos aqui nesta plataforma. Estava pensando em outros. Seus textos são inspiradores.
oi!
Que lindo texto 😀 eu também adoro olhar o céu e muitos acham dias nublados melancólicos mas eu amo ❤
Acho que esse ato de observar é algo nato do escritor, uma ação ele faz de maneira involuntária. Gostei bastante desse trecho “Certos filmes não se encerram ao subir das letrinhas apressadas. O livro nunca chega ao fim quando o fecho.”
Olá!
Achei super interessante o texto, concordo com o final tudo depende da nossa vontade para dar um fim ou não numa situação.
Abraços
Caramba, que texto mais forte.
Eu ainda não conhecia o trabalho do Edward (fui pesquisar quando terminai de ler) e já encontro-me apaixonada… obrigado por compartilhar sua visão da arte dele.
Amo observar, é sempre bom pra mim.
“fecha a cortina e o filme se encerra… mas eu permaneço dentro da mesma cena. ” Adorei o texto e essa frase! Parabéns pela escrita ❤
Arrasou! Que lindeza de texto,realmente o livro não encerra quando fechamos.
Amei demais!
Beijos
http://www.anneferreirablog.com
E a luz se fez em tarde nublada… O cinza não impede que o olhar alcance quartos escuros e quartos de horas que passam como se fossem segundos. Hopper ainda vive a pintar por outros olhos…
… e mãos.