03 | cada um enxerga o mundo a partir de suas próprias cores!

 

Eu nunca lidei com proibições a casa. Havia limites… mas a palavra: proibido… não tinha lugar na casa 141 da Rua Amélia Maranghoni, onde aconteceu a minha infância. Os livros viviam espalhados por cima dos móveis, empilhados nos degraus, ao lado das poltronas… sempre ao alcance das mãos.
Não havia restrições de leitura e eu tinha livre acesso a poesia de Emily Dickinson… aos romances russos-franceses-lusitanos. Mas, os meus favoritos em meus dias de menina eram os ingleses.
A proibição — curiosamente —, aconteceu quando chegou a idade escolar… os livros eram adequados à idade e turma. Ficavam dentro de uma caixa, na sala de literatura. Cada aluno podia ler um daqueles livretos se terminassem as atividades curriculares — antes dos demais. Uma espécie de prêmio de consolação por ser mais ágil.
Inicialmente, a idéia de “caixa de livros” me chamou a atenção — até ter acesso a ela e seu conteúdo. Livros coloridos, ilustrados e com histórias pequenas-curtas, divididas em frases soltas pelas páginas. Virei aquelas páginas enormes sem empolgação e aborrecida… o devolvi a caixa com o descaso típico de uma leitora forjada em outro tipo de livro.
Acabei por encontrar refúgio na Biblioteca da escola no intervalo e seus intermináveis vinte minutos que deveriam ser suficientes para ir ao banheiro, fazer uma refeição qualquer e supostamente descansar. Era nesse tempo duradouro que aconteciam as brincadeiras estupidas de meninas-e-meninos.
Eu fugia porque não servia para aquele ambiente, uma selva com animais selvagens a solta. E, ao caminhar por entre as prateleiras, encontrei uma versão de ragione e sentimento — foi como emergir do fundo da piscina após longo período em imersão.
Escolhi a mesa do canto, perto da janela, com ótima luz e visão perfeita de todo aquele lugar calmo-tranquilo e pouco visitado. Me acomodei… e fui virando as páginas — uma a uma — até ser descoberta, de posse de um livro considerado impróprio para a minha idade, portanto, proibido. Num gesto rude — a coordenadora de turmas — o retirou de minhas mãos. E, se num primeiro momento houve espanto-susto, pouco depois eu estava furiosa. Uma tempestade acontecia do lado de dentro… desde a infância que eu sei que minhas expressões não são passíveis de disfarce…
O meu comportamento foi considerado irregular… e além de ‘ouvir’ um longo e monótono discurso sobre o perigo de consumir literatura inadequada para a minha idade, precisei aguardar sentada — no banco em frente a sala do Diretor —, pelos meus pais, que foram chamados às pressas.
Antes de ir para a escola… eu era uma criança livre dos enquadramentos sociais e dos muros convenientes — inventados para ‘nos proteger de nós mesmos’. A escola, no entanto, me oferecia uma lista de perigos e regras estranhas, com as quais impliquei desde o primeiro momento. Me recusei a ser menina, vestir saias e calçar sapatilhas pretas. Tinha a sensação de que no fluxo da vida, eu tinha perdido a hora — chegado atrasada. O tempo corria de maneira diferente naquele mundo comandado por adultos esquisitos, diferentes dos meus.
Para a minha alegria, no entanto, encontrei na figura de J., — uma senhora simpática: dona da Biblioteca da escola — uma cúmplice. Após retornar a biblioteca… ela me deu um livro enorme, com capa de couro-marrom, que continha todos os contos dos irmãos grimms — em suas páginas ilustradas, coloridas e com letras bem desenhadas.
Me aborreci assim que vi do que se tratava. Respirei fundo, cruzei os braços a frente do corpo, agradeci e avisei não iria ler aquele livro bobo. Ela insistiu… me conduziu até a mesa, esperou que eu me sentasse e colocou o livro aberto, em meu colo. Me ensinando a manuseá-lo. Era bem pesado para o meu tamanho. Mas, dentro dele, cabia um livro menor: ragione e sentimento — esse será o nosso segredo. Eu não vou perder uma leitora por causa de regras bobas.

Durante todo o primeiro ciclo escolar… li muitos livros sentados à mesa, perto da janela, longe das regras do lugar-escola — sem que ninguém desconfiasse. E sobrevivi a meninice sem ler os tais contos de fadas e suas bobagens de príncipes e princesas, reinos distantes e bruxas malvadas.

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

9 comentários em “03 | cada um enxerga o mundo a partir de suas próprias cores!

  1. Está histórias de politicamente corretos ou não… não existia muito no meu tempo… Sempre ler aguçou minha curiosidade e tb em saber o que tinha neles. Tempos bons. Fico feliz em saber um pouquinho da história. Abraços

  2. Lunna, essa pessoa que te ajudou na leitura é das minhas! Também sou contra tais regras pois o leitor se faz através da diversidade da leitura. Em minha biblioteca, cada vez que entra um aluno(a) pedindo um livro desse naipe, fico imensamente feliz. Adoro suas histórias! Bacio

  3. Tive uma sensação de familiaridade lendo seu post, quase um deja vu, como se já tivesse lido antes, que curioso! Enfim, me identifiquei com a situação de fugir para a biblioteca na hora do intervalo. Eu fazia muito isso e as vezes também durante o horário da educação física. Eu até gostava da correria e da agitação do recreio, mas as vezes só queria um cantinho sossegado e um livro. Diferente de você, comecei com os livros “tradicionais” para crianças, com pouco texto e muitas figuras. Eu adorava, talvez porque em casa não havia o hábito de leitura e a biblioteca da escola abriu todo um maravilhoso mundo novo para mim.

  4. Que sensibilidade dessa bibliotecária, por um mundo de mais pessoas assim!
    Minhas idas frequentes à biblioteca começaram mais na adolescência, quando mudei de colégio. Passava bastante tempo lá, inclusive depois do horário das aulas, na parte da tarde. Bateu saudade agora!

  5. Lembro quando minha mãe foi chamada para conversar com a professora. Motivo: Eu estava na segunda serie e me recusava a ler gibis, mas passava o recreio inteiro lendo um livro enorme do Monteiro Lobato e fazendo anotações – Na época, os livros do Sítio do Pica Pau Amarelo não tinha ilustrações, eram grandes e eu adorava anotar referencias sobre mitologia grega. Na quarta série, eu já dava os primeiros passos nos clássicos nacionais. Na quinta série a professora nos levou conhecer a biblioteca municipal e fazer carteirinha lá: Fui a única da turma a fazer a carteirinha e sair com um exemplar enorme da Odisseia (Os bibliotecários e professores não cuidaram muito bem da vigilância dos corredores, para minha sorte). Na sétima série me mudei para uma escola maior, onde havia biblioteca e eu fugia para lá em todos os recreios, buscando um cantinho para ler, quando passei a fugir durante as aulas de educação física e artística acabei sendo “descoberta” e passei a pular o muro dos fundos da escola para ir até a biblioteca municipal, onde lia de tudo também. Lembro de ter sido elogiada por uma professora de língua portuguesa por fazer ficha de leitura do livro “Iracema” nessa época, e advertida por outra professora que me viu lendo “Estação Carandiru” por ser “impróprio”. Talvez minha mãe tenha sido a única mãe de aluno daquela cidade pequena a ser chamada tantas vezes na escola com reclamações sobre “excesso de disciplina e leitura”…. Como você pode ver, teu texto me trouxe lembranças da infância!

    Beijos

  6. Em tempos em que livros com “um monte de coisa escrita”, não importando seu conteúdo, possa se tornar indesejado, sua saga de leitora é um exemplo de boa subversão a valores estapafúrdios.

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