Acordei cedo — coisa pouco comum para essa figura-humana-noturna que sou. Espreguicei os músculos e nervos. Alonguei braços-pernas-ponta-de-dedos-pescoço… esticando todos os ossos do corpo — como faz a menina de quatro patas da casa.
Respirei fundo — como um monge — uma saudade-peculiar que despertou comigo. Talvez um resquício de sonho que ficou em algum canto da pele. Nunca me lembro do que é sonho-dentro-do-sono. Água fria no rosto e o olhar no espelho — em ângulo nada reto. Gosto dos meus contornos. Os cabelos brancos rebeldes e meu sorriso trabalhado na ironia.
Apertei o botão da cafeteira…e o som rouco-gostoso impulsionou certas lembranças: o som do carrilhão gritou dentro, avisando as oito horas da manhã, ignoradas por mim, que comecei a cantarolar — would you write, would you call back baby if / I wrote you a song — flapper girl… e a me mover, com a xícara em mãos, pelos cômodos da casa.
É segunda-feira no calendário confeccionado nesse ontem que já vai longe. Bebo outro pesado gole de café e o corpo começa a despertar — flapper girl, flapper girl / Prohibition in curls / Hair of gold and a neck of curls / It’s flapper girl — caminho pelo lugar, observando a mobília e paro diante da janela. Meu olhar busca na paisagem qualquer coisa de inspiração para o texto do dia.
Escrevo diariamente ainda que não sirva para nada. Tenho consciência de que preciso exercitar o traço. Escrevo sobre a garoa que voltou. A respeito da moça que limpa a janela do sétimo andar do prédio da frente, sem qualquer cuidado ou segurança. Sobre o rapaz que grita os ovos à venda antes das dez da manhã e a mãe que agita a menina na área de recreação do prédio. Sou como o gato na janela da frente… ele agita o rabo, lambe as patas e mia seu descaso com as cenas cotidianas. Trocamos olhares e ele me mostra os dentes-caninos, como se soubesse que irei escrever sobre ele também.
Encontro no dourado que resvala nas faces envergonhadas do velho prédio-blue — e suas muitas janelas entreabertas — o que preciso. Entro onde não sou convidada e fico, como se fosse visita que, chega sem avisar.
Percebo dois personagens em seus movimentos de vida-realidade-ilusões. Uma sonora discussão — com dedos em riste — acontece no quinto andar. Face rubra. Olhar furioso. Palavras suicidas a saltar das bocas. É tão cedo… penso, enquanto repito outros versos da canção — I been gone but you’re still my lady / I need you at home / If you ain’t behind my door… e a discussão que até então era feita de gestos e palavras ruidosas, como se houvesse uma disputa para ver quem falava mais alto… vira batalha de dedos-braços. Dois corpos não ocupam um mesmo lugar. Ela dá o primeiro tapa. Ele revida e ela o empurra. E as palavras suicidas saltam novamente da boca. De repente, como numa tempestade, um instante de calmaria. Se entreolham e vejo nos olhos dela qualquer coisa de sorriso. Talvez nem se lembre mais o que era discussão.
Bebo o último gole de expresso… e meu olhar atento não passa despercebido. Fecham-se as cortinas… numa espécie de revolta — totalmente desnecessária — que me faz pedir desculpas silenciosas… como se fosse eu o motivo da discussão.
Respiro fundo numa tentativa vã de resignação. Do lado de dentro a memória sorri-satisfeita ao perceber que guardou para si qualquer coisa alheia — para esse exercício de linhas… e feito criança que faz arte, repito movimentos conhecidos.
Outro café, a canção no repeat — lovers come, lovers go / lovers leave me alone / she’ll come back to me — e os dedos em movimento pelo teclado.
| aumenta o som |
Através do seu olhar busco as coisas que meus olhos viu diante de suas janelas…
Faço um café e aumento o som…
“lovers come, lovers go / lovers leave me alone / she’ll come back to me”
Preciso retomar o hábito da escrita diária… Adorei ler teu amanhecer em movimentos compassados e aroma de café!
Começando bem o dia com estes rituais ☕️. Bom dia
Amo as reflexões que nos traz através de suas belíssimas crônicas! Esse hábito (quase um vício) por escrever, mesmo que naquele dado momento por nada, é algo que me encanta e tenho tentado trazer de novo pra minha rotina, sabe? Em janeiro eu até consegui colocar no papel muita coisa. Pouco, na verdade, para o que pretendia. Mas quando se pretende alçar o mundo, o que consegui é suficiente para me deixar feliz e satisfeita. Amei toda essa sua rotina! Baccio!
Segunda feira é difícil. Só com café…
Lunna, acho incrível como as suas personagens saltam em frente dos seus olhos e passam para a nossa mente. É o que diferencia o escritor do leitor. E eu sou sua leitora!
Bacio!
Foi muito gostosin ler esse texto, pois ontem mesmo (que foi segunda hehe) eu tve um dia não tanto tradicional, porém muito bom. Espero que as coisas acabem bem até o fim da semana 🙂 e eu tomei café, coisa que quase nunca faço.
Geralmente quando eu acordo cedo também me sinto inspirada. E aquela vontade de colocar certas coisas para fora vem com tudo!
Amei muito a sua crônica.
Apenas uma poetisa consegue transformar um simples despertar em um texto tão mágico, você ❤❤❤❤❤
As segundas são tão cheias de si! Confesso que não é o meu dia preferido, e que nunca reparo nela pois, as segundas são corridas e só o café para me alegrar e encarar as segundas-feiras…
Abraços