Narrativa do isolamento… (1)

Meio da tarde. O vento. Qualquer coisa de sol. Folhas avulsas-alheias. O futuro acena. Espero pela noite… para ver as sombras escorrerem pela parede. A xícara sobre a mesa. O último gole. Sempre café… preto-forte-denso. Observo os manuscritos com os quais passei o dia — futuro romance com seus personagens a pedir forma-fôrma.

Respiro fundo… ligo o som. Ivano Fossati devolve-me a paz por alguns instantes. Volto para casa-corpo-matéria em suspenso. Viro páginas de livros. Escrevo um pequeno texto o sobre o movimento desse dia emparedado. Caderno vermelho. Folhas amarelas. Pés descalços. Vou até a janela e observo a rua vazia. Algumas luzes acesas nos prédios. Anoiteceu? Ouço gritos como se um jogo estivesse em andamento. 

Escolho a xícara, a capsula… Aperto o botão da máquina de fazer café. Pequenos passos pelos cômodos de ontem e os versos de Fossati se repetem dentro, numa espécie de eco “C’è un tempo d’aspetto come dicevo / Qualcosa di buono che verrà  / Un attimo fotografato, dipinto, segnato / E quello dopo perduto via Senza nemmeno voler sapere come sarebbe stata / La sua fotografia. Equilibro-me numa linha imaginária, como na infância. Certos diálogos que trago na memória emergem… me devolvem à realidade das coisas-horas-dias.

Penso em Auden e seu poema tantas vezes re-lidos depois do 11 de setembro. Lembrar das tragédias do mundo nessa hora — e a voz do poeta que sempre volta — me obriga a fechar os olhos e respirar fundo. Olhar dentro. Escuto um sem-fim de vozes. Passo a limpo os anos. As notícias que acompanhei. Os medos humanos… esse território estranho. O calendário me lembra que é abril… dias de Eliot. Releio manhã à janela. Tic tac.

É meia-noite-outro-dia… a vida ainda é a mesma. Casa. Cômodo. Paredes. Cozinha. Sala. Quarto. Varanda e o traço cinza lá embaixo. Escrevi um texto sobre esse futuro-não-planejado — narrativas do isolamento. E não fui a única — outros escritores convidados  o fizeram. Falamos de nossas solitudines abismais nesse momento estranho em que quem pode, se protege num ambiente considerado seguro.

Lá fora se fala que seremos melhores depois que tudo isso passar. Não há dúvida que irá passar. Mas, não tenho certeza quanto a todos nós. Falhamos miseravelmente. Basta espiar o rumo de todas as coisas.

O que eu sei-sinto é que alguém apertou o botão — não há como recuar — e tudo pode acabar amanhã ou depois. Não fui eu e muito menos que arremessou os dados. E não fomos capazes de impedir. E não há inocentes. Sabíamos nas mãos de quem estavam os dados.

E como só nos resta esperar… que tal um café?

15 respostas para ‘Narrativa do isolamento… (1)

  1. obduliono

    Meu recolhimento tem sido produtivo. Escrevo como quase nunca. Os meus textos para o BEDA de Abril já estão no prelo. A não ser um, o último, que será em torno do dia anterior àquele, eventualmente um resumo do processo. Todos os dias há novidades, repetitivamente! Da maneira de como as coisas estão a correr, talvez não venha a escrevê-lo…

  2. Lucas

    Aaaaa eu tentei o BEDA de abril mas mais não deu muito certo aaaa. Mas fiz 12 posts e estou feliz com esse resultado. Espero que algum dia a gente passe a tarde toda no Starbucks tomando um café e conversando sobre a blogosfera ❤

  3. Alexsandra Helga de Souza dos Santos

    Aceito o café! O meu bem docinho, por favor…No final do dia, já a noitinha quem me acompanha é uma xícara de chá, enquanto pego meu caderno-diário e relato os acontecimentos do dia, mesmo em casa (e confesso, amo ficar em casa, não sinto falta de ir lá fora não) os dias tem sido movimentados…Ok, não tão intensos, mas, dinâmicos e especiais…Que possamos sair de tudo isso com mais empatia pelo outro e que aconteçam muitos encontros para cafés e bate papo…
    Abraços

  4. Leitura Enigmática

    Um café reflexivo, nada como observar a rua e pensarmos como foi nosso dia e como será o amanhã. E depois colocarmos nosso sentimento na folha de papel. Aproveite esse café e os demais que virão.

    Bacio.

  5. Darlene R.

    O café. Quase um ritual matinal diário – Preparar as arepas ou pães na chapa, colocar o pó no coador de pano, a água fervendo, os raios de sol começando a entrar pela janela e os sons da cidade começando a acordar. O aroma invadindo o dia, com memórias e planos a serem traçados. É um momento tão bom que, por vezes, se torna refleção, história, troca – Como o teu café, por exemplo.

    Abraços!

  6. Fê Akemi

    Que lindo texto, Lunna!!
    Trouxe tanto dos nossos dias atuais. Tenho lembrado tanto a infância e outros tantos momentos e que saudade que dá.
    Um valor a mais naquilo que não podemos deixar de lado.
    Infelizmente tudo incerto, mas aceito sim um café.

    Bacio

  7. Patricia Monteiro

    O café também é o meu companheiro, tanto nos dias de hoje como os de ontem e os de amanhã. Uma companhia que aquece o coração e desperta lembranças singelas nesses dias difíceis e isolamento social. Incertezas do futuro e de quando tudo isso irá acabar.

  8. Juliana Sales

    Seu textos me despertam vários sentimentos Lunna: as vezes nostalgia, as vezes reflexão, as vezes uma leve tristeza… E gosto de todos eles, justamente por despertarem esses sentimentos. Mas, sem dúvida, meus preferidos são os como o desse post, que me trazem a sensação de familiaridade, um certo aconchego. As primeiras frases poderiam descrever meu dias, quando faço uma pausa perto do fim da tarde para esperar a chegada da noite e apreciar o crepúsculo, meu momento favorito do dia. Só substituiria o chá por um café, que não consumo. Quero voltar mais tarde para ler essa “narrativas do isolamento” que você mencionou. E curioso que o isolamento, por si só, não me afeta e nem me desagrada, o que tem pesado são as causas por traz dele.

  9. Ana Claudia

    Oi, Lunna! Um café contigo, um bom bate-papo ao som de Andrea Bocelli?? No pós-isolamento eu super topo ;)!
    Aliás, esse período de quarentena tem sido de muitas reflexões, não é verdade!? A mim tem sido maravilhos, importante, mas já estou sentindo falta do contato, do calor humano. Preciso admitir! Mas que seja no momento certo!
    Grande beijo!

  10. Letícia Guedes

    Cafés têm marcado o início dos meus dias, e eu meço o fim pelos chás… Bebidas que demarcam limites em algo que, talvez, não tenha tantos limites assim. Tudo parece o mesmo, todos os dias. Lindo texto, gostoso ter a oportunidade de ler algo tão bonito em dias tão sombrios. Abs! ♥

  11. Camille Pezzino

    Isolar-se é um ato de coragem e empatia. A essa altura, prefiro evitar cafés, porque acho que pararei de dormir de vez kkk porém, aceito um chá e tantas reflexões bonitas quanto as suas. Ótima proposta, a de narrativas do isolamento. Escrever pode ser uma saída para nos mantermos sãos em tempos assim

  12. Simone Lima

    Como escreves bem! Não tem sido fácil pra humanidade adaptar -se a mudanças tão grandes em pouco tempo. Mas cada um tem tentado fazer o melhor com esse tempo, não é! ?

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