20 | * agora enfim é que descubro a recôndita chave de meus anos…

… “há uma nudez que assombra
há outra que fulmina
e há a que ilumina”.

As elegias do Duíno


 

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Abri o armário da cozinha para pegar uma xícara e o cheiro de canela tragou-me para dentro e lá fui eu pousar num desses ontens que coleciono. Quando menina, gostava de ir às compras com C. Havia uma famosa listinha com a caligrafia do mio babo, que a gente levava e lia pelo caminho: ovos, trigo, café, leite, chocolate em pó, arroz negro, batatas, tomates, cebolas, pimentão verde, alho vermelho, manjericão miúdo e um volumoso ramo de salda.
C., fazia as compras sempre no mesmo lugar:  o empório do signore K. — um homem de baixa estatura, que falava engraçado (pontuava toda palavra com um sorriso) e vivia se curvando para os clientes-amigos-conhecidos. Foi com ele eu percebi que cada um de nós inventa um idioma próprio para se comunicar. Ele sempre me ensinava uma palavra nova em seu idioma raíz.
Eu o chamava de zio lecca-lecca porque ele me presenteava com um pirulito vermelho, que tinha gosto de morango. A cada visita que fazia ao seu empório, eu calculava o tempo que levaria para ter a altura dele. Me posicionava discretamente ao lado dele para medir e somar um centímetro a mais à minha altura e um a menos na dele…
Eu ficava olhando para o alto… porque tudo era pra cima naqueles dias. Nutria certo fascínio por aquele ambiente, onde cada coisa tinha o seu devido lugar. Prateleiras limpas com centenas de produtos: ramos de ervas e centenas de potes de diferentes tamanhos Para alcançá-los havia uma escada que circulava por todo o ambiente. Além das caixas e sacos com grãos e farelos. Ele tinha uma máquina registradora antiga, que me seduziu devido a semelhança com a máquina de escrever do nonno.  Adorava ouvir o apito sonoro sempre que a gaveta abria.
O signore K., matinha um lápis atrás da orelha e era com ela que riscava — um a um — os itens da lista. Eu colava o meu passo ao dele e ria ao imitá-lo. Ele se divertia com a minha presença e dizia que iria esperar eu crescer para me contratar como assistente. E eu crescia mais alguns centímetros…
Gostava imenso de vê-lo usar um daqueles apanhadores de alumínio para encher os sacos de papel — arroz, feijão, milho, fubá, trigo — colocados em uma balança — outro objeto curioso do lugar. Os itens se acumulavam em cima do balcão… e, depois de conferidos, ele os acondicionava nas nossas sacolas jeans — que eram calças de vestir, antes de serem transformadas pela nossa vizinha costureira… a signora M., com quem eu ficava nas noites de terças. Gostava imenso de ir até lá — podia me sentar num canto e observar o cenário-lugar. As outras crianças em seus últimos instantes de euforia. Ela contava histórias para as outras crianças, que adormeciam antes do virar da página seguinte. Naqueles dias eu ainda não sabia — ou será que sabia? — que ela seria personagem de meu primeiro romance. A transformei em mãe de Alexandra. Muito mais pelo que eu imaginava. Era mágico vê-la sentada em sua máquina… cantarolando, como se o som do motor da máquina fosse uma orquestra e ela a sua regente.
signore K., chamava seu menino — que surgia ligeiro de algum canto, nunca soube de onde. Às vezes, pensava que ele se escondia em uma daquelas caixas. O menino gostava de nos contar seus planos-futuros. Queria ser aviador e voar como os pássaros. E eu pensava, mas isso é fácil… é só subir no meu telhado. Faço isso sempre. Mas esse era um segredo meu — ao menos era o que eu pensava. Não fazia idéia de que os adultos lá de casa sabiam da minha aventura. Eles tinham se certificado de que não havia perigo algum em sair pela janela e chegar até a parte mais alta da casa, de onde eu podia ver a cidade inteira… e voar, com os pássaros.


beda

 

| * verso do poema conjectural de Borges |

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

4 comentários em “20 | * agora enfim é que descubro a recôndita chave de meus anos…

  1. Lembro-me de quando passava férias em Poços de Caldas/MG. Lá, na minha infância, tinha uma vendinha em que um senhor muito gordo vendia uma balinha chamada Jeca-tatu. Esta balinha era macia, de um sabor que não sei descrever, e ela era enroladinha numa palhinha de uma cor creme clarinha. A balinha era toda artesanal. Acho que ela não existe mais. Acredito que o dono era gordinho por causa dessas balinhas…rs.

    Depois a vendinha virou uma lojona. Tenho para mim que o dono enricou por causa daquelas balinhas que não tem igual, elas eram muito famosas mesmo.

    Eu e meu namoradinho tínhamos que caminhar um bom pedaço para chegar até a vendinha. Passávamos pelos belos jardins com suas charretinhas puxadas por fofos carneirinhos, a levar os turistas para passearem por lá, onde tinha o Palace Hotel com seu cassino belíssimo e onde tinha também o relógio das flores. Era num lugar onde a grama foi toda cortada em forma de um perfeito relógio mesmo, com os números, ponteiros e tudo o mais. Acho que ainda está lá.

    Eu já tinha um namoradinho, meu primeiro namorado…rs…o nome dele era Marcos e ele sempre me levava na vendinha para comprar estas balinhas e era ele quem pagava….hehehe. Foi com ele que dei o meu primeiro beijinho-selinho…rs…que eu me lembre né, pois certamente devo ter dado muitos desses beijinhos quando mais pequenina, porque sou beijoqueira demais….rs. E adorava sentir na boca dele o gostinho desta balinha tão gostosa. Acho que eu já era bem safadinha nos meus dez anos de idade…rs.

    Esta tua lembrança precipitada pelo cheiro de canela no armário me remeteu para este momento, minha querida….você sempre me faz viajar com os teus escritos….gosto muito. Obrigada mais uma vez caríssima amiga Lunna.

  2. Adoro ler coisas que são ricas de imagens. Fui com você ao armazém, apreciei as prateleiras, os potes e ouvi as frases pontuadas por sorrisos do signore K.
    Ah e adorei saber de onde vem a inspiração para a mãe de Alexandra.

    Adorável Lunna
    bisous

  3. Parece não tenha descoberto apenas a “recôndita chave dos seus anos”, Lunna! Com suas chaves-palavras, acabou por abrir outras portas. Eu mesmo, abri a porta de lembranças quando trabalhei no pequeno bar-armazém de minha mãe. Vendia grãos, legumes, frutas, doces, salgados e servia bebidas aos homens que reprisavam as mesmas falas de todos os dias, como se fosse um ritual-acessório-desculpa para beber. Linda crônica, cara mia!

  4. Quando a leitura te leva pela mão e te faz viajar e sentir os sabores… Há uma lua desavisada no meu céu…

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)

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