22 | * últimas coisas sem porquê, nem quando…

Faz algum tempo que eu sei que a minha memória é a grande vilã da minha realidade. Justamente eu que sempre tive preferência pelas vilãs dos filmes-livros. Torço por personagens erráticos, estranhos… que trava suas batalhas pessoais contra o sistema e os conceitos desde a infância — de alguma maneira eu compreendo suas imperfeições.
Aprendi que lembrar independe mim… não acontece quando eu quero. E não faço idéia de que gatilho irá acionar o virar de páginas dessa enciclopédia particular de lembranças. Apenas acontece.
No final da tarde de ontem… enquanto eu bebericava meus pesados goles de café, observava a paisagem desértica do bairro e me divertia com a algazarra das maritacas nas árvores da rua. Em meio a isso, recordei um dia de aula qualquer e não faço idéia porque fui atraída para aquele exato instante.
A minha memória é feito um jogo de cartas — nunca sei o que virá para as minhas mãos. Eu gosto disso… desse não-saber. Talvez por perceber que existe uma espécie de seleção natural das coisas. Muito por não lembrar e esquecer. Apenas o que realmente importa, permanece e volta em momentos chaves.
Ao sair para caminhar pela manhã, pouco antes das dez — devidamente mascarada e mantendo distanciamento das pessoas — por calçadas pouco visitadas nas últimas semanas. Gosto de percorrer caminhos sem mapas. Ir em frente, dobrar uma esquina, observar os contornos. E no meio do passo me deparar com uma novidade. A de hoje foi uma antiga vila de casas, que estão a desaparecer. Alguém inventou de proibir esses cenários que parecem abrir e fechar aspas nas insanidades dessa megalópole. É fácil de imaginar fins de tarde agradáveis por ali… com mesas e cadeiras e pessoas e xícaras e livros.
E foi nesse cenário que eu esbarrei em um pequeno pé de laranja carregado de lindos frutos verdes e pesados. Arranquei uma das folhas — a mais velha que encontrei. Amassei e ao provar do aroma… pensei imediatamente no chá feito pela nonna, com folhas cítricas colhidas em seu quintal. Uma delícia. A xícara entre as mãos e aquela manhã preguiçosa de verão. Sem sons ou movimentos. Eu dizia que aquela porção de realidade era um mundo paralelo ao meu. Tudo ali tinha outra cor-aroma-som. Vez ou outra um cavalo relinchava e batia uma das patas no chão, agitando a crina e os pelos do dorso. Dava para ouvir de qualquer lugar.
E ao sentir a textura dos frutos em minha mão esquerda… recordei a frondosa laranjeira que foi plantada ali para ser um presente a dona da casa que regia suas estações através do cheiro daquelas flores miúdas e esbranquiçada.
C., encontrou a pequena árvore (com menos de um metro de altura) ao voltar de uma viagem a trabalho. Era uma espécie desenvolvida a pedidos… especialmente para ela, que precisou esperar pela primeira leva de frutos para saber o sabor da mistura feita.
Eu me divertia durante a colheita. Aprendi a subir na mesa para alcançar os frutos e colocá-los nos cestos e levá-los até a cozinha. C. preparava geléias — era a única coisa que sabia fazer, na cozinha. Removia as casas com cuidado, as deitava na água com açúcar, levava ao fogo brando e deixava cozinhar lentamente. Enquanto isso, removia as sementes e passava os gomos pela peneira — um por um. Nunca provei geléia tão saborosa. Durante semanas… todas as sobremesas servidas naquela casa, tinham a companhia dos potes de geléia de laranja. E a gente só reclamava quando o metal da colher riscava o fundo do pote de vidro.


beda

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

4 comentários em “22 | * últimas coisas sem porquê, nem quando…

  1. Lunna, graças! Então não sou apenas eu que apresenta uma espécie de memória randômica? Em certa época, a chamei de seletiva. Pronto! Estava declarada a guerra! Até explicar que não era eu que escolhia as lembranças que o outro guardava com todo o carinho… Minhas recordações poderiam uma voz com frase entrecortada, um rosto na multidão, o som de passos no corredor, os olhos verdes com os quais cruzei por 30 segundos ou o cheiro de couro do carro do meu tio, na infância. Seriam escolhas minhas?

  2. Eu aqui. viajando em seu mundo descrito com tanta riqueza ,sentido os sabores e cheiros como se fosse um personagem do belissimo cenário ….

    Voltando a realidade questiono: -como há seres privilegiados que discertam histórias e lembranças COM TANTA DOÇURA E DELICADEZA DE DETALHES?

    SÃO SERES ÚNICOS…ILUMINADOS… ANJOS ENVIADOS ….PARA QUE POSSAMOS LEVITAR À ALTURAS INIMAGINÁVEIS……

    Obrigada por ter me levado nos seus sonhos…

  3. Que post tão perfumado! Também viajei, com as suas palavras, ao quintal da minha Avó, que também fazia chá de flor de laranjeira! Como um aroma nos permite viajar para terras tão quentes e distantes! Bacio!

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)

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