Eu não sou de fazer somas, por isso não sei dizer-afirmar há quantos dias estou confinada. Olhei para os dedos das mãos e ensaiei uma soma qualquer, mas não sou boa com isso também. Alguma coisa sempre me distrai e eu me perco em devaneios. Eu gostava da matemática quando era coisa simples… somas e multiplicações com um-dois-três algarismos. Nunca gostei da subtração. Mas tinha consciência da necessidade por trás do cálculo — tira um ou dois. Eu sentia fortes cólicas imaginárias ao subtrair três ou quatro… cinco ou seis. Todos os meus órgãos se contorciam por dentro. Fechava os olhos e afirmava estar tudo bem. Mas não estava nada bem. Me saia melhor com a divisão. O último biscoito partido ao meio. As jujubas vermelhas eram minhas e as outras cores todas para os outros. A massa dividida em quatro partes iguais na hora de confeccionar o pão. Duas xícaras de trigo. Duas de açúcar… quatro ovos (claras e gemas devidamente separadas).
Eu nunca soube lidar com os números frios da realidade. Tantas vidas-mortes… sobreviventes — transformadas em estatísticas. É como olhar para conhecidas formas de equação, teoremas em que um simples número modifica o resultado e te leva ao erro.
Me aborreci com os últimos números do tal vírus… e fui para a cozinha preparar um bolo de fubá — essa é a minha maneira de tentar marcar o passo. Mas era quarta. Dia de fazer bolo — antigamente — era na quinta. Isso foi antes — coisa desse ontem que atravessou a rua —, quando os dias estavam em movimento, dentro do calendário, seguindo a sequencia natural de números ordenados numa fila. A semana tinha sete dias… os meses alternavam — uns com mais e outros com menos. Me lembro que aprendi a compreender essa bagunça solar com os nos das mãos.
Nesse tempo estranho de medições perdidas… eu parei tudo e ainda não voltei a pulsar. Não encontrei caminho. Meu passo não segue. Eu preciso de calçadas. O mundo lá de fora. A marcha despreocupada. O café entre esquinas. Eu preciso escrever no ar… me misturar a paisagem urbana. Não pertencer a nada e me render a tudo. Menos informação. Não tenho estrutura emocional para as somas insanas desse nosso contemporâneo. Me emociono com as pessoas recuperadas sendo aplaudidas em corredores, mas enlouqueço com os discursos perversos-cruéis. Para escapar da realidade, recorro a um artificio antigo: retiro os óculos — gosto de embaçar a realidade para ver se vira outra coisa. Mas já não funciona como antes. Olho para a cidade e não a reconheço. O fim de tarde está incrível… com todas as cores quentes-e-frias e a lua em seu quarto crescente exuberante — me faz recordar tantos ontens.
Parece que só escrevo sobre isso: o ontem. Alguns de meus livros são sobre isso. Mas é que são muitos dias agradáveis para recordar. Minha infância foi lúdica. Mas eu não fui uma criança feliz… e nem era essa a ideia porque esse papo de felicidade sempre me incomodou. Parece que existe uma obrigação nesse sentido. Você precisa acordar para o dia e ser feliz — eu nunca fiz questão disso. Sempre flertei com a melancolia. Acho lindos os olhos nublados e um cuore a trovejar. Dias de sol não são para mim… eu prefiro os de chuva.
A felicidade me faz pensar na máscara do Coringa… na melhor versão do Batman — anos noventa. Tim Burton nos bastidores e Jack Nicholson em cena. Essa é a imagem da felicidade que coleciono. Aquele riso falso, encenado, grosseiro a camuflar uma dor com a qual não se consegue lidar…
Eu fui uma criança indócil… estava sempre faminta, em busca de respostas. Queria ler todas as palavras. Formar frases inteiras, bem pontuadas. E ficar quieta no melhor lugar do mundo — o meu quarto… de onde eu via o universo e imaginava outros.
Quando me sentava à mesa — com os adultos que vigiavam o meu crescimento —, ouvia diálogos acerca do futuro. Faziam planos. Lugares para ir. Coisas para aprender. Pessoas por conhecer — tanto por experimentar e fazer… mas era um futuro que cabia dentro de nossas vidas porque nos orientávamos pelas estrelas, as fases da lua… equinócios e solstícios. Éramos regidos por Kairós. Não atrelávamos a nossa existência ao eterno e infinito. As somas eram outras… possíveis, fáceis de fazer. Um mais um era igual a dois… e sempre cabia mais alguns algarismos.
É nisso que penso quando alguém diz que vem por aí um mundo novo — olho para a extensão da rua vazia — um traço cinza no chão — e penso em bolhas de sabão. Tão frágeis… tão nós.
Abril desse dois mil e vinte… acaba aqui. Devolvo Eliot para a prateleira e espero que na próxima vez que seu verso ressoar em mim… o mundo tenha dado muitas novas voltas e sem passar por esse ponto de impacto de novo e de novo… até porque, está bem claro que não aprenderemos nada e não seremos melhores. Seremos apenas o que somos…
A casa começa a cheirar bolo de fubá e foi o último dia do beda por aqui… mas, e daí?

Menina Lunna-Catarina,
espero que você coma um pedaço de bolo por mim. Mas, hoje é quinta, viu? Talvez tenha escrito o texto ontem. Gosto quando escreve sobre o ontem, me leva junto com você para lugares que são meus porque já visitei todos esses cantos e me sentei a mesa com os teus e ouvi esses planos vividos nos dias seguintes.
E dai, que eu adoro te ler e lamento muito que nosso país esteja a mostrar a você, figura estrangeríssima o nosso pior.
Ah, falei de você para Camille hoje, no meio da tarde. Ela disse que graças a você descobriu poetas vários e fizemos chá e nos lembramos do tempo em que tínhamos os nossos blogues e ela era uma mulher francesa. Um xuxu.
bisous
Os meses em cima das falanges são de trinta e um dias e os outros são de trinta dias. Aprendi isso na escola e fiquei espantada com a novidade. Fazia tempo que não pensava nisso. Adorei e por favor, continue a escrever sobre o ontem porque o hoje tem esse daí e me tira do sério.
Que maio seja muito melhor e que o mundo encontre uma maneira de ser melhor também ou que a gente consiga isso.
beijocas
Ai Lu…
Meu otimismo virou pó faz muito tempo. É muito difícil ter qualquer expectativa de que as pessoas serão razoáveis. É quase impossível acreditar que tudo isso um dia fará sentido, de que o festival de gente errada fazendo sandices federais terá finalmente um fim. Sinceramente não acho que amos chegar ao fundo do poço, porque se tem uma coisa que eu aprendi nesse tempo é que sempre se pode cair mais.
Mas acho que a saída é fazer bolo.
bacione
Quando conto por dezenas fico impreSSionada com a quantidade. Deixei de pensar no futuro. Só há o ontem e o hoje.
Acabando de ler vc …..me pego a imaginar como é possível dissertar sobre momentos com tamanha delicadeza…há precisão , odores, cores, ações aritméticas de forma lúdica como jamais poderia imaginar…e tantas. De repente passeio com vc nas ruas imaginárias, encontro coringa e Batman mesmo sem muita familiaridade com eles, com poetas escritores que me despertam curiosidade, situação momentânea causticantem sua deliciosa meninice e adolescência que muitas vezes se misturam com as minhas mas vc as descreve todas as autuações com a suavidade dos Deuses que levitam a nossa mente e nos levam a devanear…………..
Obrigada por existir…..por fazer nossos dias leves e com que percebamos toda a nossa estadia vida com a beleza que ela merece….vc me ensina a aprender….
Estou amando ler seus posts… vou até salvar em favoritos!
Bolo de fubá e café preto, com amo…A TV por aqui esta sendo evitada! Não sou marionete…Também não estou entendendo essa matemática do vírus, acho que não iremos entender, uns falam mais outros menos…Penso apenas nesse novo mês, novinho em folha que chegou, trazendo novas oportunidades…
Abraços
Lunna, não acho que este abril deva acabar tão cedo… nunca Eliot foi tão atual.
Estão sendo dias difíceis, desanimadores e tristes, mas temos que levar da forma que podemos, até tudo se acalmar e temos que ter o mínimo de esperança de que tudo irá melhorar, mesmo tendo aquela sensação de não será.
Bacio.
A tal felicidade que é e não é … dias difíceis … mais para uns que para outros … julgamentos, rótulos, atitudes desesperadas e desesperados quase sempre se tornam cruéis, principalmente quando bancam os fortes ao invés de pedir ajuda. Seres humanos são incrivelmente únicos, mesmo os que preferem copiar( acredito que nem para todos é opcional) eu vejo uma joia bruta, mas como diz a música “parei de pensar e comecei a sentir”, e assim os dias difíceis ficam mais leves, sempre supondo que podem piorar ou melhorar, um momento por vez 🙂
Interessantes as reflexões. Creio que a felicidade existe, mas, assim como você, também a vejo superestimada, obrigatória – Uma pressão para ser feliz apesar de… E assim, pais tentam comprar a felicidade para filhos cada vez mais exigentes, desejando a última moda, o celular moderno, o melhor brinquedo. E se perdem momentos que talvez não sejam “felizes”, mas são reais: O convívio, as histórias ao redor da mesa, a casa cheia. Se perde o momento de aprender a lidar com os outros sentimentos e chega a frustração logo aos primeiros nãos que a vida impõe. Sobre os números, tenho que dizer que eles foram meu abrigo na adolescência tanto quanto as letras. Eu me achava sem graça, feia, e pensava: Pelo menos sou inteligente. Isso me levou a amar matemática com uma força competitiva, viciada, que buscava os problemas mais difíceis para resolver.
Beijos e obrigada por compartilhar conosco essas reflexões com gosto de infância e aroma de bolo heheh
Esses dias têm sido depressivos e tristes, os noticiários trazem informações cada vez mais cruéis, procuro ver pouco porque senão vai bater o desespero de vez. Que saudade de andar por aí, também gosto muito de cafeterias e a ausência dessas idas despretensiosas tem me feito tanta falta…só resta acreditar que dias melhores virão, não podemos perder a esperança, já que ela é tudo que temos.
Infelizmente esse coronavírus vai piorar ainda mais. Com o pronunciamento do presidente sobre “parar a quarentena” e “voltar à vida normal” mais e mais pessoas serão infectadas e morrerão. Somos o Top 1 em contaminados pelo vírus graças a esse energúmeno.
Eu já estava meio ansioso e preocupado com o vírus mas ontem foi confirmado os 2 primeiros casos aqui na minha cidade e estou muito preocupado agora. Mas penso que dias melhores virão.
O cheiro do bolo de fubá parece ter chegado aqui ao final deste belo texto! Fiquei a pensar na minha infância! Ao contrário de vc, era uma criança dócil, porém um tanto retraída, tímida. Sempre gostei das letras, das cores e dia cheiros dos livros. Buscava respostas também, mas não era indagadora. Pegava-me sempre em devaneios e questionamentos internos acerca do que me diziam, mas até eu começar a contestar, ah, demorou um pouco!
Lindo texto!