marco: zero!

Não perdi o hábito de escrever diários

Nesse ano faz dez… uma soma inteira. Uma década cheia. Eu tinha as minhas decisões de cabeceiras. O tipo de coisa que eu dialogava apenas com o travesseiro e no silêncio aquecido do quarto. Eram coisas que não-são. Eu tenho uma relação bem grande com coisas que não-são… porque não é preciso movimento. Apenas observá-las de um ponto e ver como se comportam. Elas reagem a nós… e só. Não há movimento contrário. As coisas ficam exatamente onde estão.
Gosto imenso de estar deitada, com o corpo em falso-repouso. Olhos detidos no branco do teto e um quase sorriso nos lábios. Também gosto do quase… aprecio as variáveis. Possibilidades soltas na imensidão do ar.
Uma década inteira… digo em voz alta para ver como soa. Espio os dedos da mão bem abertas. Recordo a infância… espio o meu começo. Na mesa da cozinha… uma manhã esbranquiçada. Observo os gestos… repito-os e começo a desenhar um futuro.
Dez anos entre outro ontem e esse hoje-estranho… aceno do futuro e o passado retribui. Revejo o gesto, a idéia… o lugar era outro. A cidade a mesma. Sinto falta do cão a observar-me com seus olhos atentos. Sinto a aflição na ponta dos dedos… chega a coçar. Respiro fundo e sinto uma comichão se espalhar pela matéria… músculos e nervos. O livro com os versos de Pessoa bem aberto — uma boca faminta —, ao lado. Eu dialogava com toda a metafisica de Campos naqueles dias.
Foi o único livro que atravessou o mar comigo… foi uma dessas escolhas de momento, como se respondesse a pergunta feita: se tivesse que escolher, qual livro levaria? Estiquei o braço, fechei os olhos e foi no tato-cego. Tinha comprado o livro naquela semana. Ainda não o tinha lido. O levei para casa depois de ver a figura esverdeada de Pessoa na capa e o folhear rapidamente ali mesmo. Era uma daquelas pequenas livraria de Coimbra — a maioria fechou quando o modelo de bookstore surgiu engolindo-as com o apoio de todos nós, leitores…
Lia um poema por dia de Campos… como se os versos orientassem o meu caminhar pelas ruas do bairro. Era uma fase experimental… tudo era lugar e paisagem e palavra e eu a beber mil goles de realidade. Tinha meia dúzia de leitores fiéis. Eu só escrevia rascunhos. Coisas inacabadas que nunca deixariam tal condição. Eu tinha uma enorme disposição para ralhar com o papel. Sem dúvida foi a minha fase mais produtiva. Muito do que reescrevo hoje, surgiu ali naqueles dias.
Foi há exato dez anos… uma década inteira, com seus anos pares e ímpares. Eu me sentei à mesa da cozinha, com uma xícara de chá bem quente em mãos. Disse em voz alta, sem tomar fôlego: vou escrever um romance. 

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

6 comentários em “marco: zero!

  1. E deve ter quase uma década que te ‘reencontrei’… Porque acho que nosso encontro não é dessa vida e os acasos que nos alinhame faz pensar que, esse abraço seu já era meu antes do infinito existir.

    Bacio

  2. Antes de mais nada: que letra linda! Letra de adulto hahaha. A minha parece de criança que acabou de aprender a escrever e está fazendo caligrafia…
    Seu relato me fez lembrar da pessoa que eu era há 10 anos. Obrigada, tempo! Ela é alguém que não quero voltar a ser hihi.

  3. Seu relato me fez ter vontade de refletir sobre quem eu era há dez anos… Lindo texto! Algumas vezes a vejo citar as livrarias quase desaparecidas com a chegada dessas enormes livrarias que mais parecem uma enorme loja de departamentos e me bate uma vontade de entrar em uma dessas, onde ainda é possível conversar com alguém que entenda de livros, infelizmente, a cidade onde moro ficou sem livraria por um tempo bastante longo e, só agora, coisa de uns dois anos atrás, ganhou uma, dentro do shopping, dessas onde a maioria dos livros custa R$10,00, porém é quase impossível garimpar algo que fuja da lógica best seller popular e a atendente já confessou que não gosta de ler…

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)

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