26 | Bom dia para você também…

Depois de uma noite tumultuada, desisti do travesseiro e fui andar pelos cômodos da casa e acabei na cozinha. Mas, se eu fosse adepta ao cigarro, daria pesadas tragadas na varanda e deixaria no rastro um ar de nostalgia.
O que me tirou o sono? Um personagem que chegou e ficou. Dialogamos boa parte da noite, que escorreu pelas paredes. Eu passo horas inteiras a falar sozinha, com as paredes ou o teto, antes de escrever… quando saio pelas ruas (faz tempo que não pratico esse hábito) falo com as pedras das calçadas.
No meio do papo… resolvi testar ingredientes numa receita qualquer. Uma panela, uma lata de leite condensado, duas colheres de chocolate, meia colher de margarina e uma colher de pau.
Enquanto observava o movimento hipnotizador da colher — já devo ter dito em algum texto… que cozinhar me acalma-distrai-da-realidade, como se eu mergulhasse em uma espécie de transe.
Um grito lá fora, no entanto, serviu de despertador, do tipo que nos arranca da melhor parte do sono e nos coloca de pé, em um pulo:  — bom dia, dia. Uhuuuu. Eu observei aos azulejos a cozinha e orientei as orelhas para me certificar do que havia — supostamente — ouvido. Nenhum outro ruído aconteceu e eu voltei a observar a ‘massa’ do Brigadeiro que começava a ganhar forma.
Outro grito, dessa vez mais longo  — bom dia, vizinho. Bom dia pessoas lindas. Bom dia mundo-vida-árvores-cidade. Bom dia todo mundo…
Espiei o relógio… passava das sete e eu pensei em ir até a janela para saber de onde vinha tamanha euforia matinal. E como não podia abandonar a panela, me contentei com o meu imaginário, que foi abruptamente interrompido por outro grito. Uma vizinha alterada rugiu:  — cala a boca seu otário, vai te #%/+$_%. E para a minha surpresa o animado gajo respondeu:  — um maravilhoso dia para a senhora também. Seja muito feliz. Uhuuuuu. Bom dia mundo
A mulher fechou a janela de maneira abrupta… e aos risos, me pus a imaginar toda a rabugice daquela mulher. Desconhecia o motivo para a alegria matinal do gajo, mas o que sobrava nele, faltava nela. Enfiada em seu roupão de algodão, cabelos por pentear… a preparar o café em seu bule velho-amassado e a reclamar dos ponteiros da realidade em suas voltas nada cúmplice. O dia? Apenas uma data qualquer no calendário. O mês já era outro e ela nem se deu conta dos que se foram. O ano nem começou e para ela, já havia se encerrado. As contas vencidas se acumulando na porta da geladeira e tudo que ela deseja é voltar para a cama e ter algumas horas de sono tranquilo. A vida começou, mas ela se atrasou para a maioria das coisas. Chegou sempre tarde e, agora já não tem mais ânimo-disposição. A última vez em que desejou ‘bom dia a alguém’ foi apenas para retribuir um cumprimento no elevador. Uma formalidade. Mera obrigação social. Coisa que ela faz sem vontade alguma. Viver não é para todo mundo, mas o chato é que sempre é para os outros.
E o gajo gritou novamente sua alegria matinal para a rua deserta… me fez lembrar do galo em seu canto matinal no quintal da casa do nonno  — no templo da minha infância. A mesa posta. O cheiro de café. Pão quente e manteiga por derreter. A preguiça na pele e os raios de sol a dourar tudo que encontrava pela frente. A gente acordava aos poucos, ali na mesa mesmo. A cada gole de leite com café… um sorriso e os planos para mais um dia. Vontade imensa de correr. Pular. Subir. Escorregar. Nadar. Comer. Fugir. Respirar. Sorrir  — verbos fáceis de se conjugar.
Tive vontade de responder ao gajo, mas ainda era cedo demais para certas falas. Guardei tudo dentro para escrever esse texto enquanto devorava colheradas do Brigadeiro, receita da mãe de Marco, que escondia o doce em potinhos e colocava na minha mochila para mais tarde.

Ah, e para finalizar: bom dia, para você também…

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

8 comentários em “26 | Bom dia para você também…

  1. Queria te desejar bom dia, mas já passa do meio dia. A cozinha é um local nostálgico, também viajo quando estou preparando alguma receita, é incrível os pensamentos e lembranças que surgem, às vez boas, outras vezes ruins, mas na maioria das vezes são as boas. É isso ai. Uma boa tarde para você!!!

    Bacio

  2. Acredito que nesses tempos a gente tem que procurar formas de deixar nossos dias mais diferentes, já que ficar em casa e com lugares limitados para visitar faz com que os dias pareçam bem semelhantes. Até mexer um brigadeiro se torna uma experiência meio extraordinária hehe. Volta e meia me pego fazendo coisas de madrugada ou na parte da manhã, quando o silêncio reina aqui em casa. A inspiração e as vontades sempre vem com tudo!

  3. Bom dia com cara de boa tarde, por que não sou uma pessoa matinal. rs Vou ser repetitiva e dizer que gosto de como seus textos me trazem realidades que absolutamente não fazem parte do meu dia a dia. Perder o sono? Algo quase impossível pra mim, por maiores que sejam os problemas, aí está algo que nunca me aconteceu: durmo feito pedra! Cozinha pra acalmar e distrair? Nada poderia estar mais distante de mim. E a alegria matinal do desconhecido? Pra mim é uma impossibilidade física! rs Mas que reflexão boa sobre a velha rabugenta, porque não sou uma pessoa alegre pela manhã, mas não sou dessas que fico por ai regulando a felicidade dos outros. Ah, se todos fossem felizes como essa rapaz desconhecido, que além de não ter vergonha de se mostrar feliz, ainda não se importa com o mau humor dos outros, pelo contrário, deseja felicidade de volta. Adorei o texto.

  4. Adoro pessoas bem humoradas e achei o máximo a atitude do feliz rapaz: respondeu com alegria a rabugice da tal senhora. Nesses tempos difíceis demonstrações de felicidade são sempre bem-vindas!
    Que coincidência, falando de brigadeiro, acabei de fazer um também hoje, mas o meu é com leite em pó no lugar do chocolate, adoro!

  5. Confesso que sou um tanto mal humorada pela manhã- Não a ponto de abrir as janelas e gritar… Geralmente aprecio o silêncio e os aromas do café e das arepas, aprecio por alguns minutos a mim mesma, meus murmúrios e gritos interiores fluindo pro papel enquanto a água ferve e eu tento evitar a todo custo pensar na rotina que me aguarda (isso quando as coisas estão normais e a quarentena não é necessária). Acredito que só começo a funcionar após as 13h, antes disso apenas existo e repito movimentos diários… Uma coisa é certa: Eu jamais seria o gajo que grita bom dia, mas também jamais seria a mal-humorada que busca ofender a alegria alheia.

  6. Que texto, viu?
    Primeiramente pude sentir o cheiro de cada item do café da manhã e do brigadeiro aqui.
    Me diverti ao ler sobre a vizinha rabugenta, mas refleti que deveria ser mais com o que deseja bom dia alegremente e não como uma mera obrigação, afinal de contas, temos tido tanto motivo para agradecer por mais um dia acordado.
    Tenha um ótimo dia, Lunna!

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