Um poema de Mariana Gouveia

O encontro entre o sol e escorpião


Guardo-te na caixa dos segredos
como se joia fosse… espio-te
com lupas microscópicas.

Baila em mim como o apoio do decanato,
entre câncer e escorpião e canta
a sinfonia dos sóis. Depois
entre lençóis amarelos me estremeço
E cresço…
Sou quase fogo, quase lua

Sou o caminho deslizante do dia
…em direção ao teu sul. E lá na nascente
entre o intacto e o perfeito…
 eu sou a densidade do horóscopo chinês!
Combino até com seu ascendente
Entendo bem teu idioma português
Sou a chama que arde e Aquece teu destino,
teu desatino, tua emoção. E lá no céu,
entre a magia das nuvens e o amanhecer…
O dia parou para ver o encontro
entre o sol e o escorpião

Mariana Gouveia — adoradora de lua – é de lua – vive em todas as fases no equilíbrio entre o sonho e a realidade. Entre o que inventa e o que ditam para ela fazer. Tem nas costas a metamorfose das borboletas, os desafios dos bichos e de noite se fantasia de escrever.

Pinta o dia com esperança e brada a liberdade que conquistou as duras penas. Tem os pés no chão – literalmente – e as mãos a voar. Devia ter tido asa, já que vive a fantasia dos voos. Cria listas mas nunca cumpre elas. Quebradora de regras desafia a arte de viver.

TAG | Livros não-lidos (ainda)

Passei um par de horas a espiar os meus livros… de poesias, romances, novelas, crônicas, contos e ensaios. Gosto imenso de cada livro que ali permanece, em estado de espera.

Minha leituras não tem horário-dia… mas são precedidas por certos rituais. Coloco a chaleira no fogo e enquanto espero pelo apito-sonoro, vou até a prateleira, paro e espio os meus livros, observando-os como se estivesse diante de uma tela de Hopper…

Gosto de caminhar pelos espaços da casa, com a xícara de chá em mãos, sem compromisso ou preocupação com o tempo-lugar. Apenas o meu corpo a buscar por aconchego. Nas manhãs de segunda-feira, tenho preferência por poesias. Mas não dispenso um bom romance, que prefiro escolher nas tardes de sexta-feira, como se tivesse um encontro marcado para o fim de semana com uma narrativa mais longa.

Nas minhas caixas-de-feira não há espaço não-lidos. Os que chegam… vão sendo empilhados em cima da mesa de centro ou na minha mesa de trabalho. E há um outro tipo de livro, são poucos, mas acontece vez ou outra, da leitura empacar e eu deixá-lo de lado, para uma nova tentativa-futura.

Fim de Fernanda Torres e Quarenta dias de Maria Valéria Rezende, por exemplo, permanecem em estado de espera. São leituras interrompidas — estão em suspenso — a espera de um novo momento. Não sou dada a teimosia. Parei de insistir com leituras empacadas há algum tempo — dada a enorme quantidade de livros que existem no mundo. Tenho plena consciência de que não irei ler todos…

Por enquanto, são apenas esses dois que estão lá, em estado de espera-abandono. Mas não posso afirmar por quanto tempo e, se, em algum momento, deixarão essa condição. Talvez amanhã ou depois. Houve um tempo — anterior a esse — que seria um problema… motivo de desconforto. Mas superei isso ao perceber que tem certas leituras que não são para mim… e tudo bem!

TAG | o lugar dos meus livros

Sagitariana que sou… sou movida pelo improviso. Gosto imenso de inventar paisagens, construir cenáriose não tenho apreço algum por objetos prontos, pelos quais posso pagar com o cartão. Reaproveitar objetos-materiais e transforma-los em outros é o que me move. Sou aquela que ao avistar uma caçamba na rua, fica inquieta para ver o que há disponível por lá que eu possa re-aproveitar.

Quando menina ganhei uma mesa de estudos do mio nonno, feita da madeira de uma árvore que um raio derrubou, durante uma tempestade de maio. Ficou lindo o móvel… e a marca do raio era uma marca que eu adorava sentir na ponta dos meus dedos.

Com as estantes de livro… eu nunca estabeleci uma relação. A que tínhamos no escritório… era para livros técnicos. Tudo muito bem organizado por temas-ideias-idiomas… e autores. Às vezes, virava a cabeça de um lado, para o outro — como fazem os cães — para conferir os títulos numa espécie de leitura de títulos e autores…

Nossos livros literários viviam espalhados por cima dos móveis, nos degraus da escada, ao lado do sofá — ao alcance das mãos, dos olhos. Tinham movimento. Alguns gritavam por nós. Os mais silenciosos se jogavam aos nossos pés. Os únicos comportados eram os de poesias — hábeis em se enfiar embaixo de almofadas-travesseiros, dentro do bolso dos casacos. Quando os encontrava… era promessa de xícaras de chá, manta para os pés e música clássica durante as tardes.

Por aqui… durante muito tempo, tive poucos livros. Não havia necessidade de prateleira, quiçá uma estante. Fazia empréstimos frequentes na Biblioteca Mario de Andrade ou na Cecília Meirelles, na Lapa…

Com o passar dos anos e o trabalho no cenário literário, fui acumulando livros… uma pilha de ficções ao lado do sofá. Outra ao lado da cama, em cima da mesa de cabeceira. Ao ver o acúmulo de livros, Marco providenciou uma prateleira artesanal e alguns baús…

Lembro-me que ao andar por uma loja de móveis — daqueles em que se pode viver-morar por algumas horas em seus espaços montados-decorados para nos convencer a imitá-los… deparei com caixas-de-feira lixadas e envernizadas — soltas pelo chão. Comprei quatro. Depois mais quatro… Hoje são duas fileiras de cinco, onde se organizam os livros de poesias, romances, contos e um ou outro livro de não-ficção.

Mantê-la organizada é a parte mais difícil… No intervalo das minhas leituras, busco por outro e mais outro e mais outro — dando movimento a eles, que se acumulam por cima das mesas, do braço do sofá, debaixo do travesseiro, ao lado da cama…

Malditos Paulistas | Marcos Rey

Fui até a prateleira e ali fiquei — imóvel — a observar os livros e seus cenários tantos. Se tem uma coisa que eu percebi através da leitura desde que passei a devorar livros… é que as cidades narradas por autores — inexistem. Cada escritor tem a sua própria cidade… inventada-reinventada, sempre a partir do que toca-sente-pensa-observa.

Eu me lembro que ao ler Zafon — o jogo do anjo, marina e etc —, me encantei pelos labirintos de uma Barcelona imersa em sombras, com construções antigas a emergir do solo. Me apaixonei por algo que existe apenas nas páginas transcritas pelo autor, que atrelou suas tramas num tempo impossível de se apontar. A Barcelona da vida real… é outra e mesmo consciente disso, eu percorri suas ruas atrás da fantasia.

O mesmo aconteceu quando me mudei para São Paulo… persegui os poemas de Mário de Andrade a cada esquina-rua-avenida-casa-prédio e nada. A Paulicéia de Mário… nem era desvairada. Era bastante comum… simplória-pequena-encolhida — totalmente diferente da que ele narrava em seus versos.

Eu quase escolhi Remate dos Males para esse desafio — um livro ambientado em minha cidade. O dedo chegou a puxá-lo de seu lugar. Mas, o olhar correu os livros na prateleiras debaixo, onde estava outro autor paulistano… um contemporâneo que narrou uma São Paulo abusada-aguerrida-noturna-romântica e cinza… muito mais parecida com a que me seduziu.

E eu escolhi Malditos Paulistas de Marcos Rey… que coloca em cena um Carioca que vai a uma mansão no Morumbi, atraído por uma oferta de emprego. E, após vencer uma acirrada disputa — que o personagem chama irônica de concurso Mister São Paulo —, passa a trabalhar para a família Paleardi.

Como de costume nas histórias do autor… há um mistério a ser desvendando. Mas, antes disso… você precisa conhecer cada um dos personagens e se ambientar. Há dezenas de referências da Sampa de Caetano Veloso, a terra das oportunidades… — a cidade não desperta, apenas acerta a sua posição, porque tudo se repete. São sete e as sete, explode em multidão. Todos querem uma oportunidade e Marcos Rey narra com maestria a numerosa classe desbastada que trabalha para os donos da grana. A casa-grande e a senzala estão bem demarcadas pela luxuosa mansão do Morumbi com sua ala de empregados uniformizados e conscientes de seu lugar ali.

Consciente de que as respostas acumuladas ao longo das páginas só seriam entregues — devido a habilidade do autor — na última linha do romance… fui me divertindo com Raul, o Carioca… que ganha a confiança dos cachorros da casa. Seduz a copeira Lucélia… a modelo Tina e flerta com a madame Paleardi. Sempre e atento… descobre os verdadeiros negócios da respeitável família para a qual trabalha e caí nas graças do patrão, um ex-fascista italiano.

TAG | As minhas caixas de livro…

Aproveitei o domingo para faxinar os meus livros… Costumo fazer isso no último dia do mês. Mas nesse ano em que os dias-semanas-meses estão todos misturados uns nos outros, acabei por me perder de algumas rotinas, gerando algum prejuízo de tempo-espaço-lugar…

Eu não sou o tipo de leitora que coleciona livros ou que sonha em ter uma estante cheia. Acho incrível quem consegue — ao longo da vida — acumular uma parede inteira de livros-lidos ou não-lidos. Mas isso nunca me seduziu…

Fui educada a frequentar a Biblioteca pública da cidade. E ao fazê-lo, estabeleci amizade com as bibliotecárias — figuras que eu considerava mágicas — e que, em meu imaginário, viviam por lá mesmo, entre as prateleiras, alimentando-se como as traças — das páginas. Eu levava a sério a famosa expressão: devorar um livro…

Visitava a Biblioteca da cidade às segundas e sextas… quando passava um punhado de horas naquele sagrado santuário, no final da tarde — após o horário escolar. Gostava imenso do velho prédio, com pé direito alto, mesas numeradas e confortáveis, espalhadas por um amplo salão silencioso e aconchegante. Depois de uma poderosa chuva de maio… fecharam as portas para reformar o lugar e contabilizar os estragos. Reabriu anos depois… em novo endereço e com uma estranha estrutura moderna, que não me conquistou. Continuei a fazer uso da minha carteirinha de leitora, mas não encontrei um lugar para chamar de meu nas mesas com formatos esquisitos…

Outro hábito que preservo… é o de visitar livrarias de rua. A da minha infância ficava no meio do caminho — entre a casa e a escola. Quando por lá passava, acenava ao signore A., que, quando tinha novidades, deixava o balcão e acenava da porta, requisitando a minha presença. Ele era um livreiro a moda antiga, conhecido por saber os gostos de seus clientes. Para mim, ele reservava poesias escritas por mulheres e os melhores almanaques. Saia de lá — saltitante — com uma sacolinha de pano bem cheia.

Ao longo dos tempos, fui me desfazendo dos livros e de alguns almanaques. Uma caixa cheia foi deixada na Biblioteca da Escola — todos em ótimo estado. Outra na Biblioteca da Cidade e alguns pelo caminho… em bancos de praças e espaços urbanos. Gostava imenso dos bilhetes que escrevíamos — um diferente do outro — destinado ao futuro leitor, como se fosse o próprio livro falando de si.

Ao migrar para São Paulo, descobri a Biblioteca Mário de Andrade, onde fui apresentada a várias poetas brasileiras. E, uma Livraria de rua, no Centro velho, perto do Boulevard São Bento, onde comprei algumas preciosidades, como o diário de Sylvia Plath. Vi as livrarias de rua fecharem as portas e passei a frequentar a Cultura no conjunto nacional, um pouco contrariada. No começo era um mundo fantástico, mas achava o preço a se pagar pela existência daquele lugar, muito caro. E não demorou para o sonho paulistano de livraria… desabar — algo inevitável…

Eu acumulei alguns livros… a maioria de poesias. Muitos mais do que eu pretendia. Comecei com duas caixas de feira e hoje são 10… De tempos em tempos, faço uma espécie de “seleção natural”. Alguns eu vendi-doei-emprestei-abandonei por aí. Mantenho comigo os que ainda não li e aqueles dos quais não pretendo me desfazer… porque gosto de tê-los ao alcance das mãos para a qualquer momento correr os olhos por suas páginas.

Um poema de Adriana Aneli

confesso 
não percebi o momento de nossas mãos
algemadas
tentei me segurar enquanto você me levava
e me divirto agora que não podemos nos
separar
um do outro.

confieso 
no he notado el momento de nuestras manos
esposadas
intenté agarrarme mientras tú me llevabas
y me divierto ahora que no podemos
separarnos 
uno del otro.

Adriana Aneli — …nascida e vivida em São Paulo desde 1976. Aos 13 anos acreditou que a literatura era mesmo um bom negócio: depois de lançar livros, fazer recitais (vestida de mamãe Noel em cima de um caminhão) e ganhar um programa de rádio para chamar de seu, achou que estava errada e foi fazer Direito. Após sua metamorfose de décadas, redescobre a Tempestade Urbana e com Boca a Penas está de volta ao Scenarium. Fui!

TAG | Livros com as iniciais do meu nome

E vamos de desafio… Que eu já aviso: não foi nada fácil de cumprir, porque eu sou o tipo de pessoa que gosta de sentir os livros na ponta dos dedos, sem me preocupar com título do livro ou o nome da autora, escolhendo a leitura do dia, com todos os sentidos do meu corpo…

E mesmo com a idéia da #tag em mente, acabei de distraindo com facilidade. Puxei um ou outro exemplar e afundei o olhar na leitura… de poesias e voltei a ler os contos de O Aleph do portenho Borges.

Respirei fundo… e voltei ao meu propósito inicial — duas ou três vezes antes de conseguir localizar três títulos com a letra L e nenhum com a G… fui salva pelo nome de um autor, de quem li um único título até hoje.

L de… Led Zepelin, quando os gigantes caminhavam sobre a terra — que conta a vida da banda de rock que gravou uma das músicas que me seduziu pelos acordes em minha primeira década de vida. Ainda me lembro quando a ouvi pela primeira vez. Mas, pouco ou nada sabia a respeito da icônica banda e seus integrantes.
Ao ver o livro na prateleira da Livraria da Vila… precisei trazê-lo comigo e devorar as linhas escritas pelo jornalista-especialista-em-biografias-musicais que parece ter ser apoderado da fala do guitarrista Jimmy Page para escrever o livro — luzes e sombras — e expor tudo que a banda teve de bom e ruim. Dentre tantas coisas que eu descobri… fiquei pasma por saber que Robert Plant não gosta da música stairway to haven.

G… de Gordon Reece — autor de Ratos. Esse livro foi um desses encontros ao acaso. Tinha ido a Livraria Cultura do Conjunto Nacional para buscar uma encomenda e de repente me deparei com a capa — não devemos julgar um livro pela capa, certo? Mas, lá estava uma toca de rato e o título. Não resisti… abri e livro e li o primeiro capítulo. Uau! Li o livro a caminho de casa, dentro do ônibus e quase passei do ponto.

A leitora que nunca passou por isso, que atire a primeira pedra! rs

O fio das missangas | Mia Couto

Fui até a prateleira em busca de afago e, após folhear versos de Borges, esbarrei no livro de contos o fio das missangas de Mia Couto. E como não consegui me lembrar da última leitura feita… o levei comigo.

Ler Mia Couto é como regressar à casa da minha infância… dias de verão-agosto, o cheiro de madeira encerada, o canto do carrilhão na sala e os aromas — caldo de massa — da nonna, em sua aconchegante cozinha.

Os dias de domingos por lá eram festivos-cheios e o nonno contava seus casos imediatamente após o almoço — sentado na cabeceira da mesa para uma platéia interessada… sempre combinando o real com o imaginário.

Lembro-me de ter ouvido a mesma história um sem-fim de vezes… Hoje eu sei, que as narrativas não se repetiam. Tinha algo novo e inédito e surpreendente que nos obrigava a prestar atenção em cada palavra — cuidadosamente — escolhida por ele.

O fio das missangas tem esse mesmo ingrediente… é um livro escrito por um astuto contador de histórias. Mia Couto parece ter escolhido o que narrar, como se quisesse evitar que certas histórias se perdessem ou simplesmente desparecessem, sem deixar rastro ou marca.
Na sua África, como em tantos outros lugares do mundo, as mulheres ainda são meros objetos descartáveis… vítimas do horror, do medo e do abuso… Muitas de suas histórias acabam apagadas, como se não tivessem existido. Ler os contos escritos por Mia Couto é ler essas mulheres, sabê-las e mantê-las vivas para as gerações futuras.

E enquanto preparava uma xícara de chá para acompanhar o restante da leitura… pensava em Maria Metade… que decide matar o marido, mas não alcança o seu objetivo. Ele acaba morto por acidente… A culpa de não ter ido até o fim — tendo a oportunidade — a atormenta-persegue. Porque a culpa, ao contrário de seus gestos, é uma coisa inteira-cheia-plena, feito uma lâmina afiada, a cortar enquanto há carne. A narrativa nos leva a compreender aquele sentimento que consome Maria e tantas outras mulheres, não é a toa que esse sentimento é tão forte e tão feminino e muito mais denso no corpo de uma mulher que de um homem.
.


Fio das missangas, companhia das letras
Mia Couto — clique aqui para ler um trecho


 

Agosto  | o tempo das pausas…

“É porque existe o desejo, o olfacto, es o medo, e os vivos apaixonam-se
por outros vivos, e lembram-se, por vezes, do enorme número de mortos;
e dentro destes há alguns que os fazem desligar a luz e o trabalho,
e o quotidiano aí já não basta, porque o coração tem em certos dias
um orçamento incomportável”.

Gonçalo M. Tavares

Eu nem sabia que gostava tanto de quando Agosto representava o tempo das pausas… de viajar com a família, reencontrar os meus… de me perder pelos quintais de frutas, de ouvir o carrilhão cantar suas horas cheias e do talher resvalando nos pratos durante as colheradas de caldo de massa…

O carrilhão era um zombeteiro… primeiro soava gentil, uma espécie de advertência, como um zunido de abelha solitária. Era o som das engrenagens se ajustando para o estalo maior. E a hora se dissolvia no ar. Aquele som deslocava a alma do meu corpo. Lembro-me que alguém, certa vez, se engasgou à mesa… e correram todos, levantar os braços da criatura-menor, dando suaves batidas nas costas até vê-lo restabelecido.

Eu gostava de espiar o grandalhão, observando seus contornos. Soube que ele tinha sido cuidadosamente esculpido por um veglio feiticeiro — era uma das muitas histórias que o nonno gostava de contar e eu de ouvir.

Aquela casa era mágica para a criança que eu era. As paredes cruas, as telhas de barro queimado, as vigas de madeira do telhado. As enormes janelas dos quartos e da sala. As portas pesadas. As da cozinha abriam a parte de cima e tinham um apoiador para servir café aos trabalhadores, em tempo de colheita.

Agosto era tempo de céu azul e vôos de pássaros no infinito blue… De acordar devagar e espreguiçar gostoso-lento… De sentir no ar o cheiro do café feito com grãos colhidos no ‘quintal’ e moídos no velho moedor caseiro de ferro, preso a mesa da cozinha… Dos pães feitos pela nonna e pela moça — cujo nome eu me esqueci. Mas não me esqueço do problema que ela tinha nas pernas… o que fez dela — segundo as falas adultas — uma moça solteira e infeliz… porque houve um tempo em que a felicidade das mulheres dependia das alianças feitas em vida.

Todos que olhavam para ela… enxergavam apenas a perna torta, mais curta. Sua bota preta-pesada e os ferros que subiam pela perna — uma geringonça que lhe permitia ficar em pé como o resto de nós. As crianças — em referência ao mágico de Oz — a chamavam de: mulher de lata.

Ela teve paralisia aos oito anos — a única vítima da poliomielite que conheci — e se acostumou a conviver com os desiquilíbrios de seu corpo. Era uma figura triste, de poucas falas, que falseava os passos, enroscava-se nas coisas… e acusava cansaço ao ir de um cômodo ao outro. Mesmo assim, limpava a casa com esmero e ameava as crianças — que não se cansavam de importuná-la, gritando seus defeitos em voz ao alta, ao redor dela. Sempre torcia para que o aparato de ferro atingisse a um deles. Havia quem sentisse pena da solteirice da moça… e quem dissesse que ela teve o que mereceu.

Foi ela quem me deu uma sonora bronca por gastar meu tempo sentada na mureta da varanda… a espiar os pássaros no quintal: não seja estupida, você não tem asas, não pode voar. Vá procurar algo melhor para fazer.  Ela se aborrecia por me ver imóvel-quieta-sentada-no-muro, tendo pernas e podendo correr, escalar árvores com as outras crianças.

Eu era quieta… tinha preferência por livros e conversas de adulto, com os quais me misturava com imenso prazer. Ela não conseguia entender-aceitar… fechava a cara, apertando bem os olhos e, furiosa, me cutucava com ponta de sua muleta de ferro.

Soube através da nonna que ela não sabia ler… fugiu da escola por não suportar as outras crianças. Decidi que naquele verão iria lhe dar asas. Passou a existir em mim qualquer coisa de expectativa pelas quatro horas da tarde. Sentava na mesa da cozinha e esperava por ela… que no começou resistiu. Considerou bobagem aprender a ler naquela idade. Sentia vergonha por ser analfabeta e afirmava ser burra.

No dia em que estava a fazer as malas, enquanto lidava com a velha e conhecida sensação de fim de férias e ouvia o resmungar sem graça do carrilhão — era engraçado como em meus últimos minutos naquela casa, ele virava um velho resmungão. Ela entrou no quarto e mostrou o caderno. Parecia satisfeita… tinha escrito o próprio nome dezenas de vezes. E o leu — com alguma dificuldade — em voz alta… e leu de novo e de novo e de novo, provando que sabia ler e escrever. Era tão pouco e para ela era tudo…

Quando estava no carro, pronta para partir, ela aparece e disse: vou cuidar dos teus pássaros para você… Até o próximo verão!

| leia com a trilha sonora |

Um poema de Káta Castañeda

Enquanto o vento tocar minha pele
e balançar o milharal no sertão
Saberei que ainda me resta Vida
Para fincar o meu pé nesse chão
Tudo que morre
— ainda que seco
Servirá… para adubar a próxima plantação
A colheita virá e
um novo ciclo dependerá
da força de seus grãos
em germinar
Espera-se o tempo certo,
Água de minh’alma para
preparar o coração
Se forem secos tempos
…abrirão rachaduras,
Não será possível plantar os grãos.

Kátia Castañeda — sou multiplicidade, Katia Castañeda e SàngóBunmi Arike, vulcânica, labareda e águas calmas, e nessa junção, sou nós. Busco nas raízes a força o reencontro ancestral, nas palavras o alento que refrescam Orí paraguiar-nos ao que realmente somos, nós. Do sertão árido e mata Atlântica, um pouco de nós, no seio do saber África, o alimento de encontro e despertar da potência daquilo que somos, nós. Na transitoriedade que atravessa-me lágrimas e risos, construo caminhos, e nesse existir renascer. Sobre a orientação de Orí, sagacidade de èsú e ímpeto de Sàngó agradeço essa existência. Rabisco sentires, me atrevo a fragmentar em doses…

Autora do livro Labaredas