“É porque existe o desejo, o olfacto, es o medo, e os vivos apaixonam-se
por outros vivos, e lembram-se, por vezes, do enorme número de mortos;
e dentro destes há alguns que os fazem desligar a luz e o trabalho,
e o quotidiano aí já não basta, porque o coração tem em certos dias
um orçamento incomportável”.
Gonçalo M. Tavares
Eu nem sabia que gostava tanto de quando Agosto representava o tempo das pausas… de viajar com a família, reencontrar os meus… de me perder pelos quintais de frutas, de ouvir o carrilhão cantar suas horas cheias e do talher resvalando nos pratos durante as colheradas de caldo de massa…
O carrilhão era um zombeteiro… primeiro soava gentil, uma espécie de advertência, como um zunido de abelha solitária. Era o som das engrenagens se ajustando para o estalo maior. E a hora se dissolvia no ar. Aquele som deslocava a alma do meu corpo. Lembro-me que alguém, certa vez, se engasgou à mesa… e correram todos, levantar os braços da criatura-menor, dando suaves batidas nas costas até vê-lo restabelecido.
Eu gostava de espiar o grandalhão, observando seus contornos. Soube que ele tinha sido cuidadosamente esculpido por um veglio feiticeiro — era uma das muitas histórias que o nonno gostava de contar e eu de ouvir.
Aquela casa era mágica para a criança que eu era. As paredes cruas, as telhas de barro queimado, as vigas de madeira do telhado. As enormes janelas dos quartos e da sala. As portas pesadas. As da cozinha abriam a parte de cima e tinham um apoiador para servir café aos trabalhadores, em tempo de colheita.
Agosto era tempo de céu azul e vôos de pássaros no infinito blue… De acordar devagar e espreguiçar gostoso-lento… De sentir no ar o cheiro do café feito com grãos colhidos no ‘quintal’ e moídos no velho moedor caseiro de ferro, preso a mesa da cozinha… Dos pães feitos pela nonna e pela moça — cujo nome eu me esqueci. Mas não me esqueço do problema que ela tinha nas pernas… o que fez dela — segundo as falas adultas — uma moça solteira e infeliz… porque houve um tempo em que a felicidade das mulheres dependia das alianças feitas em vida.
Todos que olhavam para ela… enxergavam apenas a perna torta, mais curta. Sua bota preta-pesada e os ferros que subiam pela perna — uma geringonça que lhe permitia ficar em pé como o resto de nós. As crianças — em referência ao mágico de Oz — a chamavam de: mulher de lata.
Ela teve paralisia aos oito anos — a única vítima da poliomielite que conheci — e se acostumou a conviver com os desiquilíbrios de seu corpo. Era uma figura triste, de poucas falas, que falseava os passos, enroscava-se nas coisas… e acusava cansaço ao ir de um cômodo ao outro. Mesmo assim, limpava a casa com esmero e ameava as crianças — que não se cansavam de importuná-la, gritando seus defeitos em voz ao alta, ao redor dela. Sempre torcia para que o aparato de ferro atingisse a um deles. Havia quem sentisse pena da solteirice da moça… e quem dissesse que ela teve o que mereceu.
Foi ela quem me deu uma sonora bronca por gastar meu tempo sentada na mureta da varanda… a espiar os pássaros no quintal: não seja estupida, você não tem asas, não pode voar. Vá procurar algo melhor para fazer. Ela se aborrecia por me ver imóvel-quieta-sentada-no-muro, tendo pernas e podendo correr, escalar árvores com as outras crianças.
Eu era quieta… tinha preferência por livros e conversas de adulto, com os quais me misturava com imenso prazer. Ela não conseguia entender-aceitar… fechava a cara, apertando bem os olhos e, furiosa, me cutucava com ponta de sua muleta de ferro.
Soube através da nonna que ela não sabia ler… fugiu da escola por não suportar as outras crianças. Decidi que naquele verão iria lhe dar asas. Passou a existir em mim qualquer coisa de expectativa pelas quatro horas da tarde. Sentava na mesa da cozinha e esperava por ela… que no começou resistiu. Considerou bobagem aprender a ler naquela idade. Sentia vergonha por ser analfabeta e afirmava ser burra.
No dia em que estava a fazer as malas, enquanto lidava com a velha e conhecida sensação de fim de férias e ouvia o resmungar sem graça do carrilhão — era engraçado como em meus últimos minutos naquela casa, ele virava um velho resmungão. Ela entrou no quarto e mostrou o caderno. Parecia satisfeita… tinha escrito o próprio nome dezenas de vezes. E o leu — com alguma dificuldade — em voz alta… e leu de novo e de novo e de novo, provando que sabia ler e escrever. Era tão pouco e para ela era tudo…
Quando estava no carro, pronta para partir, ela aparece e disse: vou cuidar dos teus pássaros para você… Até o próximo verão!
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