03 | casas também são personagens…

Eu gosto imenso de sair para andar calçadas-ruas… e essa foi a parte mais difícil quando o #fiqueemcasa (se puder) se estabeleceu como nova regra de sobrevivência. A minha escrita sempre esteve atrelada aos meus passos. Escrever e andar sempre fez parte do meu processo criativo…
Muitos capítulos — inteiros ou pela metade — de meus romances foram desvendados enquanto eu apreciava a fachadas das casas-prédios, tropeçava em figuras indômitas-humanas em seus movimentos apressados… para longe da minha realidade.
Percebi com o passar do tempo que o meu passo e a ponta do grafite avançam numa mesma direção.
Não deixei de escrever, mas passei a revisitar os cenários por dentro… fechar os olhos e rever cenários de ruas-praças-calçadas-esquinas. Nos primeiros dias foi desorientador. Sentia falta da noite — minhas caminhadas preferidas eram as noturnas… depois da meia-noite, tendo como única companhia a dog Jane.
Foi sufocante o lado de dentro… o passo preso e a escrita contida. Me senti ali no primeiro mês pandêmico enjaulada em meu próprio corpo. Como distração tinhas as janelas alheias. Repeti o ritual da senhora da minha infância que tomava conta da vida alheia. No meu caso, preferi inventar possíveis histórias, que hoje penso em tentar descobrir — ainda como distração — o quanto errei e acertei.
Me interessei por certas janelas-personagens, curiosamente não acenei a ninguém. Guardei o aceno no último segundo, preservando-me, fechando a cortina quando era surpreendida por certas figuras-confinadas. 
Mas, hoje — depois de quatro meses — respirei fundo e decidi dar aos meus pés o sabor dos passos. Segui o insano ritual do tal novo normal — que inclui diversos cuidados: máscara, frasco de álcool in gel, roupas de sair… e o desafio de se manter distante de pessoas, que insistem em contato, como se na realidade delas, nada estivesse a acontecer. 
Escolhi visitar as mesmas casas do bairro… para me certificar de que algumas coisas não mudaram — e estão no seu devido lugar… a minha espera.
Minha primeira parada foi a Casa amarela. Constatei satisfeita que ela ainda não caiu, embora acuse cansaço em suas paredes repletas de trincas cada vez mais espessas. Se um vento soprar um pouco mais forte, duvido que resista. O jardim segue sendo um dos mais bonitos da rua. Estranhamente parece ser cuidado apenas pela chuva e pássaros. O que me fez olhar para cima em busca do céu. Nada de chuvas nesse horizonte de prédios cada vez mais altos. Um avião — coisa rara desde que a nossa realidade colapsou — atravessou o meu olhar. Estava em rota de pouso… e eu de partida.
Avancei rua acima e como quem pula amarelinha: duas esquinas depois… estava diante das casas iguais, na rua de paralelepípedo. A minha favorita na rua… e a primeira, identificada como por Rua do Alecrim — que avisa num bilhete escrito à mão que está com os dias contados. Mas, por enquanto, oferece azeite, alguns outros ingredientes e o mobiliário — tudo à venda. Do lado há uma loja de vinhos, onde jamais comprarei uma garrafa. Não é pelo preço já que não faço idéia do valor cobrado por uma garrafa de rótulo bonito. É pelo tipo de gente que festeja aos risos e sem cuidados, em meio a uma pandemia. Gente jovem, sem máscara… a viver como se nada os afetasse. Enquanto do lado de cá, tudo me afeta. Não sei como lidar com tantos números em progressão. Queria conseguir não pensar e como não consigo, dou aos pés mais um pouco de passos…
Alcanço a rua arborizada… casas e mais casas com seus números pares e ímpares. Esbarro na anatomia que brota do chão entre esquinas. Ali viveu uma personagem minha. Vou indo… até a casa da veglia signora que me disse uma frase inteira, de uma só vez, sem tomar fôlego — eu sou mais velha que essa árvore. Observo a fachada. O número 152 é um velho conhecido-amigo. Era a casa de uma amiga, uma professora aposentada… a portuguesa amiga dos bichos, chamada de stregga na rua da minha infância. Ela me deu o melhor dos presentes: um cão da raça Fox… menino arteiro que se foi cedo demais. Ao passar por lá, nessa manhã meio cinza, meio esbranquiçada… acenei as duas. A mulher portuguesa de minha infância e a de ontem, que se ofereceu a mim, consciente de que seria uma personagem em minhas linhas.
Observo a rua deserta… aconchego as mãos no bolso da calça — repetindo o ritual de ruas-esquinas-calçadas. Com os olhos a procurar por novas anatomias. Desde menina que casas e prédios também são personagens. Quem lê meus escritos  sabe que observo janelas-portas enquanto caminho. Já entrei sem ser convidada e fiquei por lá… a espiar as vivências, aprendendo os hábitos para depois — diante da tela — escrever minhas histórias.


b.e.d.a — blog every day august —
Adriana Aneli Claudia Leonardi Darlene Regina
Mariana Gouveia Obdulio Nuñes OrtegaViviane Almeida

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

7 comentários em “03 | casas também são personagens…

  1. Hoje também sai… fui socorrer minha irmã em alguns itens e foi estranho não poder dar o abraço costumeiro. Mantivemos a distância razoável enquanto nossos olhos se abraçaram.
    Andei contigo por aí, amore…

  2. Andar sem rumo…Adoramos passear por São Paulo, vamos de carro até um determinado bairro e saímos a pé, sem destino, tirando fotos…Faz tempo que isso não acontece, por aqui ainda estamos confinados…Não temos ruas ou casas preferidas…Mas adoro criar histórias para as casas que chamam minha atenção…Achei que fosse um pouco de “loucura” da minha parte…Vejo que me enganei!
    Abraços

  3. Precisei sair ontem também – Despensa vazia, precisava ir até o mercado. No caminho, pessoas sem máscara, pessoas sentadas rente aos muros, bebendo uma cerveja, como se tudo estivesse normal. Jovens, adultos, idosos, misturados na mesma negligência – E assim os números sobrem. Difícil não pensar…

    Beijos!

  4. Eu amo caminhar! Andar a pé sem destino só para ver a paisagem e o que está acontecendo na natureza mas, neste momento que estamos vivendo em não estou fazendo isso porque tenho medo! Eu me protejo, a minha família também mas, conheço várias pessoas que não estão e acham que é tudo paranóia geral.

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