“Tive consciência de que uma primeira questão se colocava: o que significava para mim ser mulher? Primeiro pensei poder livrar-me disso rápido. Nunca tive sentimento de inferioridade, ninguém me havia dito: “Você pensa assim porque é mulher”; minha feminilidade não me atrapalhava em nada”.
— Simone Beavouir, em o “segundo sexo”.
Na semana-mês que passou por mim, atribuíram-me uma vez mais o adjetivo característico durante uma fala: “achava que você era lésbica-sapatão”… devido ao meu jeito-estilo de ser-existir e de se vestir. Eu ri porque nunca me ocupei de rótulos. Não os atribuo, tampouco os considero para consumo. Nunca me preocupei com a imagem que o outro tem de mim… até por considerar impossível saber o que o outro vê quando me olha-observa. O olhar tem suas formas peculiares de rótulos e eu nunca me afeiçoei as fôrmas e suas formas. Sempre fui aquela que fugia das multidões, procurando o lado contrário, o canto oposto…
Eu tinha pouco mais de oito anos quando ouvi pela primeira vez a palavra androginia. Respirei fundo e senti qualquer coisa de segurança-acolhimento. A repeti em voz alta algumas vezes… e, de posse de seu sentido-significado, certos desenhos se agarraram a minha matéria — uma espécie de tatuagem. Era uma palavra na qual atracar a minha existência. Mais tarde seria uma frase — inteira —, de Bevouir a causar turbulência nessa embarcação que sou: “não se nasce mulher”. — e, eu sorri… como se tudo em mim fizesse algum sentido.
Naqueles dias eu não era nada. A pele, a voz, o corpo… estavam em mutação. Eu tinha dobrado de tamanho. Meu corpo tinha novas formas… de seios, bunda, coxas. As roupas precisaram ser trocadas… e um par de tênis não durava nem seis meses — perdas e ganhos, próprios da idade.
A mente seguia inquieta e a alma selvagem. Os gestos indóceis… e eu ainda não era alguém. As mutações iriam muito além da matéria… e o espelho não dava conta de exibir tudo que acontecia em minha embarcação. Era necessário estar atenta a tudo para não me perder e cair nas emboscadas traiçoeiras da realidade, moldada por certos senhores e senhoras, com seus malditos manuais de existir.
Eu tinha uma certeza: não queria repetir fórmulas, formas. Queria experimentar, ousar, descobrir, provar de tudo um pouco… até compreender o humano que eu era. Abusei dos excessos, enganos. Somei e subtrai com a mesma voracidade. Encarei o espelho e celebrei meus cabelos brancos no meio da segunda década de vida.
A mulher que eu sou… é causa-consequência de todas as escolhas feitas, decisões de momento ou de uma vida inteira. Sei de que gosto — do que não é lugar comum — o que sinto — amor e ódio em proporções iguais — e penso — nada é para sempre, absolutamente tudo é para nunca mais — e, principalmente, sei o que vejo quando encaro o espelho pela manhã, após molhar o rosto com água fria…
Uma mulher que ama-odeia-tropeça-cai-se-levanta, que gosta de percorrer calçadas, atravessar ruas, dobrar esquinas, tropeçar em vultos humanos — reais ou imaginários —, contornos urbanos, pisar poças, observar cotidianos impossíveis-improváveis. E que sabe, conscientemente que, se lhe fosse dado o direito de nascer de novo… seria na mesma pele — porque nascer nos coloca em igual condição: uma multidão de nada-ninguém.
Texto publicado na Revista Plural 21 — edição de março de 2019
b.e.d.a — blog every day august —
Adriana Aneli — Claudia Leonardi — Darlene Regina
Mariana Gouveia — Obdulio Nuñes Ortega — Viviane Almeida
Como é complicado nos ajustarmos aos olhos dos outros, até entendermos nossa própria identidade pessoal. Mesmo assim, nada é tudo resolvido de maneira tão simples. É uma construção adaptada às condições internas sempre mutantes. Constante e, de certa forma, sem fim.
Tenho pensado muito no tema.
Não em comparação com o homem, mas a mulher é especial por si própria.
Há verbos q estão muito ligado a nós, e q podem fazer a mudança numa sociedade.
As pessoas teimam em estender rótulos: Nos rotulam pelas roupas,gestos, gostos, aptidões. Se não tivermos atenção, nos embalam para presente, apertam, moldam, entregam. E a vida se vai, distribuída em moldes, cópia da cópia, inexpressiva. Como é difícil nadar e fugir, descobrir em nosso próprio caos a ponta do Ice Berg de quem somos.
Abraços
Mais um texto que mostra a inteligência limitada de pessoas que ao invés de se socializar, preferem ficar em seu mundo, rotulando e discriminando o outro. É lamentável o ser humano contemporâneo, sendo que isso vem atravessando os séculos, então nem sei mais o que falar.
Essa coisa de rotular as pessoas é algo no qual sempre me pego pensando. Na realidade, é um trabalho diário para desaprender a fazer isso, porque acredito que a sociedade incute em nós esse hábito e que, se pararmos para pensar só um pouquinho, veremos que é algo sem sentido e completamente desnecessário. E mais, rotulamos não só aos outros, mas a nós mesmos e assim nos limitamos. E tendemos a não gostar do outro por um rotulo que nós mesmo atribuímos, isso é tão sem sentido! Ainda temos muito o que evoluir como humanidade…
Essa semana eu passei por uma situação tão chata quanto a sua, as pessoas sempre querem que nos encaixemos em rótulos ou padrões, como se fossemos bonecos coloridos em uma estante. Uma conhecida me perguntou porque não uso aliança, se ainda estou casada com meu esposo e coisas do tipo..rs! Eu fiquei pensando: qual a relevância do meu casamento na vida daquela pessoa, vai mudar alguma coisa? Não, tenho certeza que não. Apenas para explicar eu e meu esposo nos casamos na igreja mas, não gostamos de usar aliança e estamos juntos há sete anos sem ela, não atrapalha nossa vida em nada e somos muito felizes mas, aos olhos de outras pessoas isso é errado ou até pecado.
Rótulos! Estava conversando exatamente esses dias com uma amiga da pós, como rotulamos o outro e muitas vezes não conseguimos olhar de outra forma a não ser pelo que falaram: “ele é terrível”, “não tem jeito”, etc…Hoje tento me fazer de surda e antes de lançar um olhar tento me esvaziar…Exercício difícil e extremamente cansativo… Hoje me encontrei mas amanhã quem sabe? Olhando para o ontem, hoje tenho orgulho de quem sou…
Abraços
Uau, Lunna! Frase perfeita essa que você me apresentou de Simone Beavouir: “não se nasce mulher”! Sabe, lendo seu texto, pensando sobre atribuição de rótulos, me lembrei de quando tinha seis anos que, ao entrar na escola, minha voz foi logo o que chamara a atenção das pessoas, principalmente dos alunos. Me recordo que diziam que “era grossa como de homem”, sem contar que eu sempre fui a grandalhona no meio dos outros, a mais bruta, que tinha “hábitos de meninos”. Gostava de praticar esportes e, muitas vezes, ganhava “deles” nas competições. Na verdade, eu só apenas gostava de me expressar, mas acabava por me isolar. E isso nunca me definira, mais ou menos mulher, mais ou menos feminina. Bobagens das sociedades! Culturas ignorantes, infelizmente! Adorei refletir e, mais uma vez, me recordar de questões com seus textos!
Bacio!
Ler seu texto foi um respiro enorme, Lunna, pois essa semana me vi assistindo alguns vídeos com pessoas falando tantas barbaridades sobre o papel da mulher e sobre o que realmente é SER mulher… ver você falando com tanta propriedade e sinceridade foi tão bom. Deixou meu coração quentinho ❤
Eu esse ano percebi o quanto tentar me encaixar dentro de rótulos que as pessoas colocavam em cima de mim como sendo "certos" me fazia mal. Santa terapia que está me ajudando!
Tal como a Lunna, renego os “malditos manuais de existir” e faço gala em trocar as voltas aos rótulos que os outros querem colocar-me, para sua própria segurança. É um percurso pessoal, com percalços e solidão, mas vale a pena viver em verdade connosco! Bacio!
Infelizmente a nossa sociedade ainda tem muito o que evoluir, coisas pequenas como a necessidade de rotular pessoas ainda existem, mas espero estar viva pra ver chegar o dia em que isso será um hábito ultrapassado e as pessoas se importem com questões realmente relevantes. Abraços, boa semana!