Amanheceu outubro (de novo)

Setembro foi embora como chegou… trinta dias riscados num calendário-torto. E eu nem sei o que fiz. Não fiquei parada feito os ponteiros do carrilhão da minha infância… que silenciou o pulsar em um outubro-outro. Mas, eu sigo com a sensação de imobilidade no corpo-alma…
Talvez porque Outubro — que é o décimo mês no calendário gregoriano — seja um mês estranho para mim. O homem da minha infância se foi em um outubro-ontem. Ele foi o responsável por eu gostar do escuro e da noite. Me mostrou as estrelas e me ensinou a subir no telhado — apontando onde e como posicionar os pés, indicando a posição certa — em linha reta —, na junção das telhas. E lá do alto, me ensinou a esticar o olhar para varrer a paisagem de leste a oeste, seguindo o rastro do sol deixando na imensidão azul. Foi ele quem fez o meu primeiro baú — em sua oficina mágica… onde eu aprendi a lixar a madeira e a cutuca-la com um formão.
O século ainda era outro… mas o mês era outubro e choveu forte, alagando as estradas — um raio caiu perto do estabulo… assustando os cavalos. O velho homem saltou da cama… calçou suas botas e foi acudir os seus leais amigos de quatro patas. Depois que a chuva passou… o encontraram debaixo de uma árvore. Seu melhor Amigo Seth — um puro sangue —, estava ao lado dele.
Eu estava longe… mas acordei no meio da noite e perdi o sono. Grudei o olhar na vidraça e fiquei a espiar a cidade em gotas. Queria subir no telhado… mas não é um lugar possível em dias-noites de chuva.
Quando amanheceu o dia treze de outubro… veio a notícia. O tempo fez uma pausa definitiva. Mio babo também se calou. Todos nós emudecemos naquele dia — as palavras todas nos escaparam. E o velho carrilhão preso no meio da parede da sala… parou e marcou a hora exata em que o homem da minha infância deixou de pulsar — três e dezessete.
Depois desse dia, a velha armadura de madeira com o mecanismo alemão imóvel… passou a ser o monstro do Casarão. Havia quem passasse por ele e fizesse o sinal da cruz. No começo eu me incomodava mas, depois eu entendi que era muito mais fácil para eles… porque, como escreveu Eliane Brum: antes de nos assombrar, os monstros eram humanos. Eles nos assustam pela lembrança de sua humanidade. A monstruosidade é o que nos ajuda a suportá-los
Eu ficava parada diante dele — espiando os números romanos e o badalo em bronze… imóvel e protegido por aquela velha caixa escura — enquanto repetia os sagrados versos do poeta inglês Eliot:

Os tempos presente e passado
Estão talvez presentes no tempo futuro,
E o futuro, contido no tempo passado
Se todo o tempo é presente eternamente
O tempo é todo irredimível.
O que poderia ter sido é abstração
Permanece perpétua a possibilidade
Somente num mundo de especulação

(…)
Burnt Norton
T.S.Eliot

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

8 comentários em “Amanheceu outubro (de novo)

  1. Eu amanheci pela primeira vez em um outubro. Que ele tenha merecido uma crônica tão linda me traz a sensação que não será em vão que o viverei… a espera de meu futuro 3:17h.

    1. Fiquei cá a pensar a respeito de outubro… esse mês que Gregorius moveu sem considerar a sonoridade da palavra, apenas moveu ao seu bel prazer. Sempre que o pronuncio, me enrosco e sinto o erro no passo. O tempo tem seus moldes humanos, deve ser por isso que não me convence. E você aí a espera do futuro. hunft

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