Os erros cometidos

Enquanto me vestia para ir à feira… comprar uma dúzia de ovos, me lembrei mais uma vez do momento em que eu disse em voz alta — vou escrever um romance — uma decisão definitiva, com a qual eu teria que lidar nos dias seguintes…
Até então, eu havia percorrido todos os caminhos da escrita. A poesia foi a primeira incursão. Leitora dos melhores poetas — desde a infância —, fui induzida a acreditar que seria uma possibilidade. Rabisquei alguns versos que serviram como exercício e para que eu tivesse plena consciência de que eu não seria uma Poeta.
A Poesia forjou o meu olhar — fez de mim, uma pessoa atenta à realidade e seus muitos movimentos-sons-cores-aromas e eu gosto imenso quando cada um dos meus sentidos percebem algo novo-inédito na paisagem. Erro o passo, sinto faltar o ar e percebo a pele anestesiada… por dentro e por fora. É aquela velha-conhecida sensação de primeira vez — coisa da infância que se mantêm intacta na adulta que sou. Ouso dizer que a minha escrita não seria a mesma sem os versos de Dickinson-Plath-Sexton… e tantas outras mulheres-poetas incríveis, com as quais sigo convivendo diariamente. É minha generosa porção de ar nesses tempos insanos…
Eu também rascunhei alguns Contos… mas, esbarrei na dificuldade em lidar com narrativas curtas. Na fase escolar… era um pesadelo ter que escrever redações com míseras trinta linhas. Era sempre a mesma pergunta: pode ser cinquenta? Claro que não podia… e esse fantasminha nada camarada frustrou minha incursão por esse gênero.
Frequentei muitas oficinas e cursos… pesquisei técnicas de escritas — e criei um blogue, onde passei a publicar — sem pudor— os meus rascunhos. A maioria sem forma-fôrma-técnica-estrutura. Eram apenas textos escritos sem compromisso… como se eu voltasse no tempo indo me sentar à mesa da cozinha para escrever uma missiva — a um correspondente qualquer.
O meu Sótão era uma espécie de gaveta aberta e sei que a escritora que sou… deve muito a essa ferramenta que sigo a usar, embora a intensidade das publicações tenha diminuído consideravelmente. Com o meu Sótão eu adquiri ritmo-voz-estilo porque ao escrever diariamente — dois ou três posts por dia—, estabeleci uma rotina. A maioria das pessoas torcem o nariz para essa palavra — tão necessária e essencial para quem escreve. A rotina impõe comprometimento-disciplina e faz a mente entrar nos trilhos. Para alimentar o Sótão… eu reservava uma preciosa fatia do meu dia para escrever, publicar, fazer visitas, comentar e responder comentários feitos por leitores, que no auge dos blogues, se multiplicavam de um dia para o outro. Eu preparava uma xícara de chá ao cair da tarde, pouco antes das seis, e ia me sentar diante da tela…
E foi justamente em um blogue que eu publiquei os primeiros capítulos de uma história escrita por escrever somente. Mas eu não fazia idéia de que havia rascunhado o meu primeiro romance. Ainda hoje eu me espanto com a inocência do processo. Eu não construí personagens, não estruturei a história, não me preocupei com o tipo de narrativa. Apenas me sentei diante da tela — como se fosse assistir a um filme… e escrevi.
O convite para essa aventura partiu de uma amiga-blogueira — minhas marés. Estava na moda naqueles dias, os blogues serem usados para publicar livros, em capítulos. Era tudo experimental… e como éramos parceiras de crime… aceitei o desafio e a história se escreveu — sem qualquer coisa de consciência-preocupação.
Impressa, a narrativa ocupou míseras trinta folhas de papel… que eu guardei no fundo de alguma gaveta, enquanto tentava aprender mais sobre o universo da escrita e o meu próprio. E quando tive certeza do gênero pretendido — o romance —, não me lembrei da trama rascunhada. Apenas corri até a prateleira e fui coletando os favoritos. De Jane Austen à Virginia Woolf — apenas histórias narradas por mulheres. Li cuidadosamente cada livro, procurando respostas para as muitas perguntas que insistiam em meu íntimo. Foi um delicioso processo.. eu descobri a escritora que eu pretendia ser, através da leitora que eu sempre fui, mas que deixei de lado ao me sentar para escrever — um dos muitos erros que eu cometi ao dar os primeiros passos conscientes pelo mundo da escrita.


Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana... degustadora de café. Figura canina e uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Paciência é algo que me falta desde a infância. Mas sobra sarcasmos para todas as coisas da vida que fazem mais barulhos que cigarras nos troncos das árvores. Aprecio o silêncio e falas cheias, escreve-se em prosa por apreciar a escrita em linha reta. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

6 comentários em “Os erros cometidos

  1. Adoro ler sobre processos de escrita, me anima e impulsiona a escrever. No começo do ano enfim havia conseguido obter uma rotina, mas bem, o ano foi acontecendo… e desanimei. Lendo seu texto me trás um gás para não deixar de me esforçar em ter uma rotina que sei ser necessária.

  2. Errar também pressupõe andar sem rumo ou destino, ainda que nos destinemos a fazer algo. É bem possível que errar traga boas surpresas, se o que consideramos certo seja, de fato, incerto, ainda que planejado. A criação dificilmente se dará sem dedicação e disciplina, se bem a explosão criativa ocasionalmente possa vir a ocorrer, perturbando nossa planificação. De qualquer forma, o primeiro passo é desejar se lançar mãos às obras.

  3. Oi, Lunna! “…vou escrever um romance…”, são decisões ousada que vagam em mentes como as nossas”! Mas tenho certeza absoluta do quão valioso e merecedor de ser lido sejam seus trabalhos, que parecem ser traçados com tanto esmero. A gente sente as prévias aqui, no seu espaço, com reflexões tão bela e fortes.
    Disciplina e procrastinação me são os pontos fracos em meio à quantidade de tarefas que coloco em minha rotina. Tenho tentado ajustar isso e dar mais valor a esta vontade que também pulsa dentro de mim, colocando-a em planos superiores.
    Grande beijo!

  4. Muito gostoso acompanhar seus processos de escrita… Sabe, me falta essa disciplina de sentar diariamente e escrever – Quando consigo fazer isso por uma ou duas semanas seguidas, sinto que as palavras passam a fluir melhor, que tudo se encaixa…
    Me identifiquei muito com a Lunna perguntando se poderia escrever cinquenta linhas ao invés de trinta… Minha letra sempre foi grande e quando pediam redações eu escrevia tudo pequeno, espremidinho, numa luta incessante para fazer caber em poucas linhas as histórias que imaginava… Tempos bons que (ainda bem) não voltam mais…

    Beijos ❤

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