Não perdi o hábito de escrever diários,

Eu já não sei o que é a realidade e o que não é. Eu  invento tanto coisa, tenho a cabeça tão cheia de memória, de recordações e coisas que já não sei muitas vezes se as coisas se passam ou de facto como eu continuo a recordá-la ou se passaram de outra maneira. Isso é um problema diabólico para mim. É que, se calhar, eu tenho inventado de determinada realidade, de determinados acontecimentos, a minha própria realidade que é outra coisa.

Al Berto

…porque certos rituais não se perdem de nós.
Colocar a água para ferver e aguardar pelo som da chaleira a apitar desesperada. A xícara em cima da mesa e a caixa de chá ao lado… a viver o precioso tempo de espera — uma espécie de meditação que nos une e separa dos mundos que somos-habitamos. O livro que deixou a prateleira e veio se abrigar em minhas mãos-olhos para um passear de emoções diversas. O caderno-vermelho e suas folhas de amarelecidos tons se oferecendo a escrita, uma confissão feita ainda na primeira — ou seria na última? — hora… 
E eu — uma equilibrista de realidades-ficções — a espiar os contornos alheios, a vivenciar-experimentar outras vidas-silêncios-pausas. A sentir tudo… muito mais por dentro que por fora. A tragar dos movimentos de horas inteiras, quebradas, partidas. A somar e subtrair, multiplicar e dividir numa confissão silenciosa feita ao papel, esse fiel companheiro que a tudo aceita e guarda. Ainda que, em algum momento severo, eu prefira senti-lo se deformar entre meus vãos. Como é prazeroso amassar uma folha de papel — me permite qualquer coisa de paz.
Meu primeiro diário foi coisa de criança… um caderno-vermelho, presente de C. — a dama da minha infância. Levei tempos para me entender com aquele objeto cheio de folhas devidamente pautadas, que ficou esquecido-abandonado no fundo de uma gaveta durante muito tempo, soterrado por coisas-outras-muitas.
A palavra diary — escrita em dourado e em outro idioma — me desconcertou. A obrigação dos dias, a narrativa constante… o dizer-se em primeira pessoa do singular, numa escrita confessional me deixou a deriva.
Mas eu encontrei um caminho nas manhãs de sábado — para onde voltei nesse ano maluco —, onde acontecia o ritual de livros-cadernos-envelopes-xícaras. A dama da minha infância escrevia para si, os amigos e para mim ocasionalmente. Trocávamos olhares, sorrisos cúmplices enquanto ela espiava o meu crescimento e reparava que sábado após sábado eu a imitava…
Deixei de escrever diários no mesmo dia em que deixei de ocupar as manhãs de sábado que, para mim, sempre foram um lugar onde estacionar as minhas emoções. E, ao regressar a esse cenário… do qual me despedi sem acenos-palavras, sou toda estranheza. Sinto como se não soubesse mais empunhar o grafite e desconheço o caminho das palavras no papel. Dura pouco… o tempo de um pesado gole de chá e um olhar ao longe… a margear a paisagem com suas janelas fechadas para os meus olhos — abertas para o meu imaginário. E confesso-me, sem credo ou penitências-futuras

Diário das 4 estações
lançamento virtual dia 28/11,
às 17h00 no facebook

Participam de projeto as autoras
Aden Leonardo, Lunna Guedes, Mariana Gouveia, Roseli Pedroso

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana... degustadora de café. Figura canina e uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Paciência é algo que me falta desde a infância. Mas sobra sarcasmos para todas as coisas da vida que fazem mais barulhos que cigarras nos troncos das árvores. Aprecio o silêncio e falas cheias, escreve-se em prosa por apreciar a escrita em linha reta. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

6 comentários em “Não perdi o hábito de escrever diários,

  1. Dos meus 11 aos – talvez – 20 anos eu mantive o hábito de escrever em diários. Não sei dizer em que momento deixei de fazer isso e nem porque. Algum tempo atrás, voltei a sentir essa vontade (necessidade?) acho que até comentei em algum post aqui. Mas infelizmente ainda não consegui recuperar esse hábito. Tenho alternado momentos de escrever diariamente com momentos de abandono, pontuados por escritas soltas em dias aleatórios.

  2. Já tive muitos diários durante a infância e comecinho da adolescência, mas só fui começar a de fato usá-los lá pro final da adolescência e início da vida adulta (que doido, não?!) e ainda hoje escrevo algumas coisas (não sempre, mas às vezes gosto, para aliviar a mente – tenho até que fazer isso já já!)
    Abraços

  3. Mas que belo texto! Eu também amo rituais, rotinas, práticas que nos mantém presentes no mundo. Mas a verdade é que perdi o hábito de escrever diários nessa quarentena. Sei lá, foram tantas coisas tristes, tantas quebras de rotina que acabei parando de escrever nele. Quem sabe eu volte ainda este ano! Amo reler meus diários e talvez seja importante registrar um pouco mais deste ano turbulento. Registros para a posteridade!

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)

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