“gingando pela calçada ou trotando por estradas rurais eu vejo rostos, / rostos de amizade, precisão, cautela, suavidade, idealismo, / o rosto espiritual previdente, o sempre bem-vindo rosto comum benevolente, / o rosto de quem canta, os rostos ilustres dos advogados naturais e juízes de costas largas, / rostos de caçadores e pescadores, sobrancelhas salientes… o rosto pálido e escanhoado dos cidadãos ortodoxos, / o rosto puro e extravagante e ansioso e interrogativo do artista (…)
Folhas da relva / Leave of Grass
Walt Whitman
Ao ler Whitman — Flores da relva (leaves of Grass) — nessa quinta-feira… comecei a me questionar a respeito do ato de escrever livros-rascunhos. Acho indigesto afirmar o óbvio: a literatura é um produto humano e, por ser assim, escolhemos e recusamos os livros, como se fossem pessoas que passam por nós, quando o sinal muda de cor. Gostamos mais de umas que de outras porque temos nossas preferências, afinal, narciso acha feio o que não é espelho…
E, infelizmente cheguei a conclusão desagradável de que não existe diferença entre escolher um livro na prateleira de uma livraria e uma lata de ervilha na prateleira de um supermercado. O procedimento é exatamente o mesmo. Há diferentes marcas… e nós nos deixamos seduzir por uma ou por outra. Com os livros não é diferente… existem centenas de autores, dúzias de editoras e uma dezena de livrarias. E as nossas escolhas são feitas a partir dos mesmos elementos mas, eu poderia ficar satisfeita por ter consciência de que prefiro comprar uma espiga de milho orgânico numa feira de rua.
Como vivemos em um mundo cada vez mais Capitalista… o que não nos falta, são opções. A maioria: desnecessárias. Durante quantos anos usamos o mesmo tipo de máquina de escrever ou máquina fotográfica? Muitos de nós se deixaram converter — porque capitalismo é exatamente isso: uma religião, movida-impulsionada por uma fórmula nada secreta que nos converteu em discípulos. E o capital em senhor supremo de todos nós… fiel ao molde original: a nossa imagem e semelhança. E todos dizem amém.
Tenho consciência de que vivo em um mundo de religiões várias… mas eu nunca disse amém a nenhuma delas. Não acredito em deus, tampouco no sistema. Nunca emprestei a minha imagem a divindade alguma e sempre preferi ir na contramão do bando acostumado a marcha.
Ouvi o que os falastrões falavam… a fala do começo e do fim,
Mas não estou falando nem de fim nem de começo
Li em algum lugar que a palavra escrita é um registro nosso… uma espécie de eco do que levamos dentro: o meu protesto, a minha procura, os erros e acertos, as minhas vontades. Mas, se isso vai se transformar em diálogo com alguém ou se será uma espécie de narrativa solitária para ser guardada dentro de uma lata… impossível saber.
Eu gosto de pensar em mensagens dentro de uma garrafa, lançada ao mar — há um destino possível, mas não se sabe quando-onde, apenas imagina-se. E pode acontecer — quando chegar o momento — dessa lata-garrafa não ser aberta. É uma das muitas possibilidades. Embora conte sempre com a curiosidade que move os corpos por aí. Enquanto autora… personagem-atéia que sou, não me rendo a idéia de um deus… Portanto, considero natural que a minha palavra tenha como destino um canto obscuro — marginalizado — o que me permitirá alcançar alguém… igualmente escanteado.
Bem, sempre existem meios de subverter as regras do sistema… começando por não se render. O difícil mesmo é escapar dos modelos-prontos porque, no final, se repetem os silogismos e os leitores escolhem o produto que melhor os agrada. E concluo que a palavra, definitivamente, é um produto com código de barras. Por isso o silêncio me seduz… às vezes, o melhor caminho para os pés é o chão mas, eu gosto imenso de imaginar calçadas-ruas-alamedas e avançar apenas por dentro.
Uma criança disse, O que é a Relva? trazendo um tufo em suas mãos;
O que dizer a ela? …sei tanto quanto ela o que é a relva.
Vai ver é a bandeira do meu estado de espírito,
tecida de uma substância de esperança verde
…
Vai ver a relva é a própria criança
Grande Lunna! Inspirada e inspiradora como sempre. Saudações!
Nunca li Walt Whitman. O trechos em Itálico são dele? Gostei bastante. Quanto ao livro como mero produto, muitas vezes sinto exatamente isso – Principalmente quando pessoas que dizem “amar uma boa leitura” começam a conversar e percebo que só leem o que está na mídia – Nada mais “antigo”, nada alternativo, apenas as mesmas fórmulas clichês (nada contra, leio títulos assim de tempos em tempos). É uma constatação chocante, mas verdadeira.
Sigamos fugindo do sistema dentro do possível.
Beijos
Inspirada e corajosa.
Sempre muito sucesso!
Abraço