…lendo meus desacontecimentos

Escolhi viver sem fronteiras definidas, nações não me interessam, limites só me importam os da ética. Tenho um coração andarilho, um corpo mutante, uma mente trangênera. Sou irmã, mãe, filha, homem, cúmplice, bicho bicho, humano, árvore, erva daninha, pedra, rio, Vírus. Sou todas as cores, todos os sexos, todas as línguas. Sou palavra em palavras. Mas o meu corpo que viver e que amou e que gozou foi marcado, este tem um lugar. Na letra-luz de Luzia.

Se tem uma coisa que gosto imenso de fazer, é passear entre prateleiras, principalmente as da Livraria da Vila… aqui no bairro em que moro. Sempre que estou nas imediações, me atrevo por lá… e, saio a caça de títulos-capas-personagens-tramas e seus respectivos autores. Geralmente procuro pelo que conheço e reconheço, mas, eventualmente acabo diante do desconhecido.

Raramente saio de mãos vazias. Amparada pelo meu instinto de leitora, já descobri muitos livros que se tornaram os meus favoritos… no acaso dos passos-toques-e-olhares.

Me lembro que ao sair da Starbucks… resolvi deixar os meus passos me conduzir até lá. Passei diante da Igreja de Moema e constatei que nunca me interesse por aquele templo. Parece apenas mais uma construção a brotar do chão e só. Alguns passos depois e lá estava eu… a caminhar por aquele universo peculiar — observando as coleções, sem compromisso, o que me fez recordar um Título — um desses lançamentos recentes que aguçam o paladar. Como não o encontrei, procurei por um atendente que prontamente me socorreu.  

E, enquanto aguardava… observei os livros deixados ali, para serem devolvidos as prateleiras. Dentre eles, a capa branco-leite, com um desenho simples-gostoso — que me fez ir e vir de minha infância — se ofereceu ao meu olhar e eu o degustei num apropriar-se morno. O título — num estalar de dedos — me remeteu à Pessoa… e pronto! — estabelecemos uma espécie de contato imediato de primeiro grau.

Como quem tem sede… folheei as primeiras páginas e, para minha surpresa, reconheci a autora de outros cenários — era o nome por trás das colunas lidas pela manhã, antes da vida acontecer. Avancei por entre os meus espaços de memória. Virei as páginas de maneira febril, aterrissando outras realidades.

Me perdi e fui trazida de volta… pela voz do atendente, que me retirou daquele transe, com suas respostas cheias. Ele tinha em mãos o livro-outro-lançamento…

Às vezes, penso que os atendentes da Livraria da Vila são magos disfarçados — eles sempre conseguem o que eu quero-preciso… e estão sempre prontos para falar de autores-livros. Não fazem caretas quando anuncio que nas minhas prateleiras há diferentes versões de um mesmo livro.

E, com os dois livros em mãos… me dirigi ao caixa. Enquanto esperava, fui desbravando a realidade de Eliane Brum, que escolheu contar sua vida através das palavras — em narrativas que são diálogos cheios-imensos-únicos.

Logo ao abrir o livro me deparei com a sua voz, de maneira inquieta, a se questionar — e ao fazê-lo, estende o questionamento até mim, sua leitora —, como cada um inventa uma vida? Como cada um cria sentido para os dias, quase nu e com tão pouco?

Me senti acabar-desmoronar… e recomeçar.
Eliana Brum, em cada página, convidava-me a passar um tempo em sua companhia… como se me esperasse para o famoso chá das cinco, com a mesa posta e as histórias enfileiradas… para uma troca.

Eu degustei cada palavra… realidade e ficção. O lado A e B de uma trama, da qual fui me apoderando e, de repente, a narrativa se misturou a minha e passou a ser a nossa história, contada por uma mulher que vai pincelando a si… melhorando e piorando esse passado que nos acena de dentro das páginas metamorfoseadas em corpo-memória.

Ao final, na página cento e dezoito, me deparei com a palavra silêncio, que foi escrita —propositalmente — em minúsculo. Eu não sabia se vida ou morte, se fim ou começo, se verdade ou mentira. Solucei. E fugi para o nada, para onde, vez ou outra, eu escapo e fico. Disseram-me que isso é um meditar natural. Eu considerava ser uma espécie tempo de pausa do meu corpo-mente-lugar. Como se o meu sistema se reiniciasse. Fico quieta, imóvel, muda, sem ar… até retornar desse “lugar” para onde escapei…

A bomba — o signo da coisa e não a coisa — resgatou em mim a possibilidade de que o horror pudesse ser pronunciado sem que eu morresse — ou matasse.
Quando dita, a bomba poderia me salvar.

Mas, ainda há mais um último texto e outra palavra com a qual lidar. Novamente recuo da leitura. Avanço para longe do tempo presente. Me vejo a bordo de outros passados… igualmente meus-dela-alheios, porque como propõe o livro: estou a conceber meus — próprios — desacontecimentos…

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

2 comentários em “…lendo meus desacontecimentos

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)

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