Fotografia: Mariana Gouveia
Escolhi para esse texto primeiro/página primeira… a palavra “amanhecer”, porque não gosto de inícios-começos-primeiras-linhas. Sempre tive dificuldades em lidar com esse outro verbo: iniciar…
Dar o primeiro passo nunca foi para mim.
Eu sou do tipo que junta os pés e salta…
Mas, foi lá na infância que tudo se tornou demasiadamente complicado. O primeiro dia de aula foi qualquer coisa enfadonha-aborrecida. Queria voltar para casa e até que dei sorte ao ser considerada imprópria — na primeira vez.
Foi o meu melhor momento.
A minha definição futura aconteceu ali.
Mas veio a segunda tentativa… e dessa não escapei. Indicaram-me o meu lugar: uma maldita cadeira vazia.
Amarrei minhas expressões todas e me tranquei do lado de dentro. A primeira aula-professora… foi desorientadora. Eu não queria estar lá. Não queria ser parte do bando e para piorar eles não tinham nada de novo para me oferecer.
Eu já sabia juntar as vogais e consoantes em frases inteiras. O meu nome foi a primeira coisa que aprendi a escrever na mesa da cozinha… dentro de uma manhã de sábado. Aprendi palavras várias… umas eram lindas, outras imperfeitas. Me encantei com o ritmo, a cor e o som de todas elas…
………………mas, em sala aula — o lugar das primeiras vezes —, o que eu mais ouvia era que precisava me acostumar e eu nunca fui boa em conjugar esse maldito verbo.
Não me acostumo! Não quero me acostumar!
Me recuso… soa bem melhor assim, não acha?
Por isso… prefiro usar outra expressão para disfarçar esse momento: dia seguinte…
Mas sei que está tudo lá! Não me iludo, tampouco me deixo enganar.
Todas as coisas estão onde devem estar… no seu devido lugar.
Quando penso no meu começo, no entanto, não sei para onde olhar. Uma confusão de imagens se forma em minha mente e eu nem sei de fato o que é coisa minha-alheia. Sensação de ter em mãos um daqueles álbuns de fotografias — folheado num fim de tarde chuvoso, enquanto ouço as histórias por trás de cada fotografia. Vez ou outra sou induzida a qualquer coisa de lembrança e a emoção faz tudo que sei-sou mudar de lugar.
Respiro fundo e acabo invariavelmente no mesmo cenário: de frente para o velho carrilhão, a acompanhar seu movimento bem articulado de ponteiros.
Por dentro, toca Tchaikovsky e eu vou regendo realidades… o nonno a domar o tempo, como se fosse um Mago. Ele era um enviado de Kairos — tenho certeza —, e dependia apenas dele e de mais ninguém a hora seguinte. A lenda da menina do verão ganhou força após a morte do velho maestro. O carrilhão nunca mais cantou. Quando foi removido da parede e vendido ao relojoeiro da cidade — que tirou do bolso um punhado de notas para pagar por ele — estava imóvel-quieto e a caixa de madeira-estrangeira carcomida por cupins. Ele não se importou, estava interessado apenas no mecanismo, que foi removido na minha frente, como se fosse o meu próprio cuore.
Mio nonno morreu para sempre naquele momento.
Quando me lembro dessa cena-triste, sinto algo estranho por dentro. O cuore parece falsear dentro do peito. Erra o ritmo… deixa de fazer eco e eu busco por ar.
Quando fui avisada da morte do Maestro de minha infância, a primeira coisa que me veio em mente foi o som do carrilhão… quieto-mudo. Sempre acreditei que ele tinha se calado no exato instante que o cuore do mio nonno parou de pulsar — um sinal de devoção e respeito por aquele homem…
Eu sei que todas as coisas têm um fim — como disse o poeta Al Berto — e é preciso que seja assim para que outras possam ter início. Por tudo isso é que eu prefiro o verbo amanhecer! …mais um dia — o seguinte a todas essas coisas que se foram ou que ficaram pelo caminho. Uma soma simples-comum, que se inicia comigo… em outra pessoa.
* esse texto é parte integrante do livro aos sábados escrito durante os sábados de 2020… uma maneira de preservar a minha sanidade e não surtar com a realidade.
Foi um dos textos que mais me emocionei nesse livro.