
…escrevo nessa hora quase cheia enquanto o chá esfria na xícara — são quase oito. Ouço a música que dá ritmo a essa noite recém chegada… que trouxe para a minha boca o verbo: ir…
Eu tenho consciência de que não é nada fácil conjugar esse verbo — tão cheio de movimentos. Eu tento há anos lidar com ele. Olho para o meu passado e lá está ele… a narrar as minhas vivências, determinando toda a minha trajetória. Repito em voz alta para ouvir o som do verbo na frase que é uma espécie de tatuagem na minha pele, por dentro: é preciso deixar ir… e soa como um mantra a reger cada uma das minhas ações-futuras — freando-as ou não.
Esvaziar-se ou preencher-se de algo.
Em que direção avança esse verbo, afinal?
Recordo uma manhã de sol… eu tinha sete-oito anos. Vesti as roupas de sair, calcei minhas botas vermelhas e fui dar um passeio pelas carrugi, de mãos dadas com C., que depois de alguns passos me disse com sua voz de mulher-adulta: “quando andamos ruas, deixamos toda uma cidade para trás”. Aquilo me intrigou. Num susto, me virei rapidamente para ver o que estava deixando. Fui repreendida por ela: “não faça isso”. Antes que eu dissesse palavra, ela se abaixou para ficar na mesma altura que eu e disse: “deixe o passado ir. Não tente resgatar o que se perdeu. É necessário que algo se perca por ser impossível levar tudo. Ou como saberemos o que realmente é importante? Se tentar levar tudo, vai falhar e, pior, irá perder o que está por vir. Serão duas perdas a se lamentar”.
Nunca me esqueci dessa poderosa frase… ainda a ouço por dentro, numa espécie de eco, junto com outras coisas que mantenho guardadas. E ela tinha razão… não há espaço para tudo. O que fica… é o que realmente importa.
E o segredo é aprender a lidar com o que fica. Cada pessoa que passa por nós, leva e deixa um pouco de si. É impossível participar da vida de alguém — ainda que seja por um mísero segundo — sem deixar qualquer coisa: um sentimento bom ou ruim, uma sensação agradável ou terrível, uma ou duas lembranças. Alguma coisa sempre fica e o que fazemos com isso… faz toda a diferença.
Enquanto caminhávamos, eu ainda tentei me lembrar do que eu tinha visto naqueles primeiros metros de caminhada. Acabei por descobrir que o meu olhar vigiava atentamente o chão em que eu pisava. Eu adorava observar a maneira como o meu pé tocava o piso ao caminhar, percebendo as irregularidades do caminho, onde pisar e de que desviar. Uma espécie de mapa particular… nada escapava. Eu percorria quarteirões inteiros assim. Mas, para atravessar as ruas, eu aprumava o olhar olhos… era justamente quando eu descobria pessoas ao meu redor e me divertia com os desenhos que fazia, por dentro. Em todos esses anos, isso nunca mudou…
Repito o verbo ir uma última vez… enquanto levanto a mão no ar para um aceno que a consciência retribui. Nunca foi fácil passar pela porta, levando pouco ou nada de mim. Mas, sinceramente, difícil também não foi…
Abril [entre tantas coisas] é o mês do B.E.B.A e lá vamos nós…
e eu terei companhia nessa aventura diária
Adriana Aneli – Alê Helga – Claudia Leonardi – Darlene Regina
Mariana Gouveia – Obdulio Nuñes Ortega – Roseli Pedroso
Você pode até refutar, Lunna, mas foi um dos textos mais fortes e próximos de sua essência que escreveu. Resta saber que essência é essa. Mas só você sabe e tem o direito de saber.
Oh, meu caro… eu não refuto o olhar de um leitor, jamais. rs
Uma frase ou um ensinamento poderoso. Algo que deveria estar escrito num local que sempre olhamos para lembrar e relembrar.
Concordo com você… se eu fosse de tatuagem, escreveria no braço esquerdo. Mas como sou de papel, risco..
Demorei para assimilar essa lição de vida. Deixar ir… Hoje, sinto-me mais leve por ter aprendido mas, sempre preciso relembrar pra não acumular. Belo texto!
É minha cara, esse verbo não é de fácil assimilação, mas é necessário — e como! rs
Cada dia mais necessário!