19 | O que a memória nos recorda (?)

Recordei enquanto degustava uma generosa xícara de chá de um correspondente com quem troquei cartas durante anos.

M., era um signore muito generoso com as palavras, que vivia em Santa Maria da Feira, em Portugal. As missivas escritas por ele… chegavam dentro de um envelope artesanal, na primeira e última semana do mês, respectivamente…

Suas linhas exibiam uma caligrafia sutilmente desenhada… devido ao uso de uma velha Sheaffer.  Depois de algum tempo de correspondência… passei a reconhecer o envelope dentre os demais. Passou a ser o primeiro a ser aberto.

Me apaixonei pelo diálogo atemporal e pelo fato de ser um relojoeiro aposentado. Lembro-me que em uma das missivas, ousei indagá-lo: diga-me, meu caro signore, o que faz agora que o tempo parou? Ele respondeu prontamente na missiva seguinte. Estava ocupado em ensinar o ofício ao neto, um jovem apaixonado por mecanismos e engrenagens, desde a infância. O tempo seguia o seu curso e isso me fez sorrir, dentro de um fim de tarde de quase-primavera.

Enquanto lia as duas folhas em pares  — com caligrafia espaçada e narrativa peculiar, eu imaginava os passos dele… pelos cômodos da casa e via tudo com os olhos dele… o senhor de seu tempo. Nunca perguntei, mas tinha certeza de que havia um cuco sobre a lareira da sala. Sabia como era o quintal de frutas  — da casa dele  —, onde corriam os netos mais novos, coisa que ele gostava de admirar da janela do quarto. A mesa da cozinha repleta de ingredientes para o almoço, preparado por sua senhora.

Ele falava de seus dias, suas paixões… as travessuras com os netos, os passeios com sua dama  — há mais de quarenta anos. Alegrias, frustrações e das saudades que sentia do filho, que havia deixado Portugal em busca de melhores oportunidades. Eu percebia qualquer coisa de insatisfação quanto aos ritmos de sua existência, contudo, ele dizia ser um homem feliz na maioria do tempo…

Certa vez, quis saber a minha idade e respondi sem delongas. Já nos correspondíamos havia três anos. Mas, quando soube que eu tinha míseros treze anos; nunca mais me escreveu. Esperei por notícias, mas não tive resposta. Eu insisti, duas-três-quatro vezes. Mas, os envelopes artesanais se foram para todo o sempre.

Anos depois, quando já vivia em Coimbra, decidi conhecer Santa Maria da Freira — cidade ao Norte de Portugal, perto do Porto. Levei comigo o endereço dele e fui até lá. Fiquei do outro lado da rua a apreciar a arquitetura da casa 22. Não tinha pretensões quanto a contato. Eu queria apenas vestir-me de seus passos, atravessar as mesmas ruas, observar fachadas e ir embora. Mas, quanto estava prestes a partir… o vi passar pelo portão, ao lado de sua senhora.

Sendo o homem gentil que sempre se mostrou nas missivas, se manteve do lado de fora da calçada. E eu fiquei a observar aquela linda cena matinal. Busquei pelo meu velho caderno no fundo da mochila e deixei um bilhete para ele: ‘uma pena que o nosso tempo parou‘. tic tac.

Ele não foi o primeiro, nem a último a me julgar-condenar pela pouca idade. Me acostumei a ser jovem demais para algumas coisas e um tanto velha para outras. Mas, se tem algo que eu aprendi com o signore M., é que as pessoas dão demasiada atenção ao tempo…

Abril [entre tantas coisas] é o mês do B.E.B.A e lá vamos nós…
e eu terei companhia nessa aventura diária 

Adriana Aneli Alê HelgaClaudia Leonardi
Mariana GouveiaObdulio Nuñes OrtegaRoseli Pedroso

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

21 comentários em “19 | O que a memória nos recorda (?)

  1. Ah, mas que bobo esse português.
    Foi ele quem perdeu ao te julgar pela idade.
    Fiquei aqui pensando na poesia de suas linhas.
    Eu não daria atenção a esse pequeno detalhe ao ler uma correspondência sua. Não mesmo.

    bisous

  2. Poxa que triste que ele tenha deixado de lhe escrever após saber sua idade, infelizmente muitas pessoas nos julgam pela idade e cometem até desrespeitos por isso, ele não sabe o que perdeu.

    Bjos💐

  3. Ah, que dó…
    Que bobo! Perdeu e muito
    O tempo…cruel, por vezes devastador…cobrando seus momentos
    Adorei sua viagem e reconhecimento
    Bacio, Carissima

  4. Oi Catarina, pensei no seguinte, ao menos as suas missivas nos rende histórias deliciosas.
    Ok. Não teve um final feliz, mas teve um desfecho.
    Pior seria não saber.

    Eu odeio não saber…

  5. Ah o tempo, esse danado que passa sem nos dar conta. Quando enfim percebemos que ele passou, muito nos dói. De mim apenas fica um pedido, continue gritando trovões por aí… e siga sem se importar com essas pessoas que a julgam. Eles se autocondenam, veja o caso de M. que perdeu uma troca deliciosa.

    Gr. Bj. Lunna!

  6. Uma pena que o meu patrício se portou dessa maneira, mas eu me candidato desde já a receber suas missivas.

    Um abraço!
    Ana

  7. O tempo é algo incrível, né?
    O quanto as pessoas valorizam, o quanto o estudam, o quanto ele mede nossa existência.
    Hoje em dia tenho uma percepção diferente do que tinha antigamente sobre esse tal de “sr. Tempo” hehe.

    Sou fascinada por relógios, e tento ver as pessoas não pelo seu tempo de existência, mas pelo tanto que tem a nos ensinar. Você por exemplo, Lunna, me dá a sensação de ser alguém fascinante desde sempre.
    Já eu, sempre tive o título de esquisita, independente da idade… mas hoje eu nem me importo.

    Amei conhecer essa história, fiquei fascinada, na verdade! *-*

  8. Lunna, eu gosto de ler as cartas e quando as escrevo tenho que me policiar para parar de escrever. Quanto mais íntimo vou ficando mais gostosa fica a arte de escrever. A nossa troca de palavras começa a encaixar e daí até as palavras conversam e vão se somando ao agradável diálogo. Me entendes? Sei que sim.
    E quanto ao seu corresponde, não lamente, ao menos ele lhe deixou algo.
    Deve ser esse o sentido.

    bacio
    Manoel

  9. É realmente chato quando isso acontece… quando o “tempo passa”.
    A impressão que tenho é de abandono, e sem que a gente tenha feito nada para nem ter uma despedida… :/
    Mas enfim, vida que segue…

    Bjks!

  10. Quando mocinha também me atrevi a trocar correspondência e fiz grandes amigos, alguns permanecem ate hoje.
    Era u processo delicioso, o tempo da espera e o abertura do envelope. Tudo era tão mágico.
    Lamento que o meu patrício tenha agido dessa maneira. Ele como relojoeiro deveria saber o verdadeiro sentido e significado do tempo.

    Gr Bj

  11. Eu já conhecia essa história, contada a mim pessoalmente em um dos nossos encontros em outra vidas, mas você o transformou em uma bela história de encontros e desencontros. Fico a imaginar duas coisas, entres tantas que poderiam justificar que M. parasse de lhe escrever: a primeira é que talvez tenha se sentido um tanto humilhado e/ou enganado por ter se correspondido com uma garotinha; a segunda, é que achou perigoso sobre o que os outros pensariam sobre essa correspondência com uma menina. Eu creio que essa segunda opção seja a mais válida, ainda que os europeus possam ter uma perspectiva diferente sobre essa questão. Esse é um texto que vai além do puro entretenimento por ser tão saboroso de ler, Lunna!

  12. Que história!
    E que pena que M. tenha deixado de escrever por causa da idade, depois de tanto tempo, é difícil de entender.
    Acho que fica um vazio.

    Bacio

  13. Lunna, que história! Olha, penso como o Obdulio. Ele pode ter ficado com medo do que pensariam ao saber que ele mantinha correspondência com uma garotinha. De qulaquer forma, foi ele quem saiu perdendo.

  14. Por vezes não sabemos como lidar com certas situações, provavelmente terá acontecido com esse Sr. M.
    Ficou de certo a perder, pois a Lunna é muito criativa.
    Já agora sou natural de Santa Maria da Feira, vivi lá durante muitos anos e ainda continuo a trabalhar lá.
    Não guarde ressentimentos e visite a cidade que é bastante interessante e acolhedora.
    Um ótimo cenário para muitas outras histórias.
    Uma boa noite!

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)

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