Interessava forjar um corpo além do corpo, na letra

Eu escrevia por escrever somente, na infância… sem preocupação alguma com as regras literárias — que eu nem sabia existir à época. Preenchia livremente as páginas dos meus cadernos com qualquer coisa minha: vocabulário pouco, realidade pequena-encolhida… de uma janela a outra, ruas estreitas e calçadas encolhidas. Eu escrevia conforme crescia — um centímetro ou dois por ano —, e descobria que uma esquina levava a outra e que havia dezenas de ruas na cidade que assistia o meu início. 

O meu olhar se encantava com galhos nus de folhas-flores e o andar dos gatos nos muros. O vôo de certos pássaros e a emoção que se precipitava na minha porção mais funda. Às vezes, eu confundia tudo: não sabia o que era dor, choro, alegria, tristeza. Respirava fundo e tentava desvendar aqueles mistérios tão meus. Havia quem me enxergasse triste, estranhasse o meu silêncio e se incomodasse com a minha imobilidade.

Uma criança que gostava de quarto escuro, silêncio e que, se lhe fosse dado o direito, não diria palavra… entregaria todas ao papel. E, naqueles dias, não me importava — assim como a menina Eliane Brum —, “se o que eu escrevia era bom ou ruim. Interessava forjar um corpo além do corpo, na letra“.

Pois, foi o que conquistei na vida adulta… um corpo, em forma de livro. Ao finalizar o meu romance — o primeiro —, percebi que ele respirava, roubando boa parte do meu ar. E cada leitor de lua de papel levou embora um pouco do meu corpo, do meu ar e consequentemente da minha paz.

Uma narrativa — descobri isso lá na infância —, é tudo o que somos. E não é nada fácil se acostumar a essa persona que emerge diante de nós, com um reflexo nítido, do qual não se pode escapar. Deve ser por isso que o criador do Pan, o libertou de sua sombra…

Gastei um par de horas a imaginar um escritor tentando se acostumar ao próprio corpo… há quem recorra a drogas ou a plástica para acertar um detalhe ou outro… puxando aqui, esticando ali. Mudando a alimentação com a ajuda de um nutricionista ou de um personal trainer que irá indicar exercícios mil, para modelar músculos e nervos.

Pois é justamente o que faço ao escrever um texto: tento melhorá-lo com cortes e recortes, frases inteiras reescritas. O deixo de lado para por um tempo. Regresso e leio incontáveis vezes até obter o resultado desejado — nem sempre alcançado, como naquelas plásticas que dão erradas ou implantes de silicone equivocados.

Por sorte, em se tratando de um texto… basta amassar a folha e me deliciar com o som do papel se deformando entre os meus dedos.

Abril [entre tantas coisas] é o mês do B.E.B.A e lá vamos nós…
e eu terei companhia nessa aventura diária

Adriana Aneli – Alê HelgaClaudia Leonardi
Mariana Gouveia Obdulio Nuñes OrtegaRoseli Pedroso

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

4 comentários em “Interessava forjar um corpo além do corpo, na letra

  1. Lunna e o seu afiado bisturi… Eu aprendi consigo a cortar na carne. Mas prefiro me imaginar mais como um jardineiro que realiza podas para que o texto-planta fique mais robusto e dê frutos.

  2. Aprendo diariamente com você a fazer essas intervenções no texto. Já evolui bastante mas sempre se tem a aprender, aperfeiçoar. Está aí, a graça do ofício. Preciso ler Eliane Brum!

  3. Com maestria você vai seguindo. Vai nos ensinando tanto Lunna. Olhares que engrandecem tudo. Sempre me surpreendendo com o que está a frente. Vai e volta. Me deixa feliz. Abraços

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)

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