O que faz brilhar os seus olhos?

livros artesanais, autora e editora, scenarium

“Quando a luz dos olhos meus e a luz dos olhos teus resolvem se encontrar.
Ai, que bom que isso é meu Deus, que frio que me dá o encontro desse olhar
Mas se a luz dos olhos teus, resiste aos olhos meus, só pra me provocar
Meu amor juro por Deus, me sinto incendiar” …

Tom Jobim

Observo a cidade vertical, com suas janelas em pares-acesas-apagadas, em geral, silenciosas… enquanto na pele a pergunta feita: enraíza-se. Respiro fundo. Questiono-me, sabendo que se escavar o bastante encontrarei uma resposta. Que surge em mim… quase como um soluço que brota atrevido por entre os músculos do estomago. Digo em voz alta: minhas mãos!

Observo-as — espalmadas no ar —, numa espécie de dedilhar aéreo que se repete no teclado, ao escrever o que minutos antes era apenas um pensamento-meu…

Eu tinha pouco mais de quatro anos e adorava espiar os dedos do mio nonno na ‘perversa’ máquina de escrever — uma velha Remington Victor T Portable. Ao reparar em meu olhar curioso-inquieto… resolveu me ensinar a arte de ‘datilografar’. Aprendi a posicionar todos os meus dedos nas teclas e a usar o teclado sem olhar as letras — tarefa nada fácil nas primeiras vezes. Durante as férias de verão daquele ano, repeti incansavelmente os exercícios, que serviam para me fazer aprender-decorar a sequência alfanumérica dos teclados das velhas máquinas, que durante cem anos ocuparam mesas no mundo inteiro.

Os movimentos frenéticos das minhas mãos imitam a urdidura da aranha. Tecem essa narrativa, que acontece primeiro em meu invólucro alucinado… onde impera absoluta a loucura de Dionísio. Cabe as minhas mãos, a posteriore, transformar tudo em verdade, que convença e encontre eco no olhar alheio. Curiosamente, na condição de maestrina sensível, são elas que dão asas a minha imaginação.

Eu nunca fui boa na arte de tecer meias, colchas… não sei unir fios, pregar botões. Os meus dedos precisam da companhia de uma lapiseira — nunca gostei de canetas, embora tenha algumas antigas, colecionáveis. Gosto imenso da maneira como a Pentel 0,5 se acomoda entre os meus dedos e escorrega suave pelo papel, marcando-o com consoantes e vogais que encadeadas formam frases inteiras ou pela metade… quando interrompo a escrita, em busca de ar. Também aprecio a escrita que se precipita das teclas do meu notebook, que substituiu há algum tempo, a velha Lettera — que mio babo tirou do alto do armário para meu uso. Também usei um barulhento teclado IBM e hoje, me divirto com o passear por silenciosas teclas, que seguem a externar realidades minhas. Raramente uso papel e lapiseira, mas não os descartei totalmente…

Não fossem as minhas mãos, certamente, eu seria outra pessoa-figura… silenciosa-muda, incapaz de dialogar realidades, mundos, vidas! Não sou dada a arte do tagarelar… falo pouco — quase nada — nem mesmo se chamada à fala. Mas, sempre que o discurso oral se estabelece em mim, as minhas mãos regem a minha voz, como se fossem escrevê-las.

…“dedos de pianistas” — é o que dizia C., ao observá-las. As unhas já não crescem como antes… porque não deixo. Não lhes dou cores, por preferir o tom natural dos seus contornos: levemente rosáceos… que combinam em ranhuras e nervuras. Às vezes, alongo os dedos até estalar as juntas. Passo creme. Observo meu traço com suas veias verdes a exaltarem-se. Me reconheço em cada risca que dizem, por aí, ser do coração, da vida, da memória. Pouco ou nada sei a respeito disso. São meus traços, minha história — inventada  ou reinventada… e, são elas, a assegurar o brilho dos meus olhos…

E você, o que faz seus olhos brilharem?

Mariana GouveiaObdulio Nuñes Ortega

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

16 comentários em “O que faz brilhar os seus olhos?

  1. Parabéns, Catarina, Lunna!
    Malditas sejam as suas mãos, que fazem não apenas os seus olhos, mas os de todos os seus leitores e amigos que desfrutam das palavras que delas brotam. Quanto a mim… penso que precisaria de um texto inteiro sobre isso, mas o que faz meus olhos brilharem é sentir que estou em movimento. Se consigo me movimentar em relação ao outro, à vida e a mim mesma, o brilho é natural e perceptível.

    Bacio.

  2. Mãos rápidas no gatilho, quis dizer, no teclado. rs
    Bela a veloz resposta dada. Fiquei a te imaginar com as mãos bem abertas no ar, espiando os riscos, a pensar qual era a da vida, do coração. Eu sempre me confundo.
    Até.

  3. Ah, estas mãos que ofertam e saqueiam, que acariciam e agridem. As mãos, assim como os olhos, já possibilitavam nossa comunicação antes mesmo do verbo. E ainda hoje falamos através delas: em truques de mágica, sensuais massagens e abraços apertados! Lindo, Lunna!

  4. Ao ler o seu texto, menina Lunna, me surpreendo pensando: por que não fui eu quem escrevi tudo isso? E depois de respirar fundo, fico feliz por não ter escrito essas linhas e ser a pessoa a ler-te. Maravilhoso.

  5. Lunna, você me deu ensejo para falar de suas mãos. Eu sempre as achei impressionantes, como se fossem apartadas de você e tivessem vida própria. Quando a via costurar os exemplares da Scenarium, para além da habilidade, percebia que pensavam no ato, as mãos, enquanto o cérebro descansava. Como bem disse C.: “dedos de pianistas”.

  6. Ah, Catarina, Catarina, eu, que já havia me apaixonado por você e suas confissões, nunca te imaginei pronunciando meu nome! Isto fez meus olhos brilharem! (que C. não nos ouça; que a Lunna não me entenda mal).

  7. Quando penso muito em algo, por um tempo longo principalmente. Então, passado os dias, abro um livro e tá lá um cientista, um articulista, alguém que estudou aquilo e tem a resposta. É o momento que o olho brilha.

  8. Ah, bambina! Adoro o que escreves e tu já sabes porque e como meus olhos brilham. Quando me caibo toda dentro do seu abraço é um dos momentos, do qual estou morrendo de saudades!

  9. Lunna, as mãos dizem muito de nós. E seu texto, cara mia, está belíssimo! Até iniciei um texto para participar mas levei um nocaute da vacina que me deixou de molho por alguns dias (risos). Talvez termine e poste em meu blogue mesmo assim. Bacio

  10. Que texto gostoso de ler! Daqueles que traz um calorzinho pro coração sabe? Nunca eu enxergaria minhas mãos de forma tão sensível e poética. Agora, quanto a pergunta, a primeira coisa que vem a cabeça, que faz meus olhos brilharem é a natureza: uma flor desabrochando, uma árvore frondosa, o céu azul de inverno, a lua que tanto me encanta, um pássaro cantando, meus animais de estimação se aconchegando no meu colo… isso faz meus olhos brilharem ao ponto de algumas vezes esse brilho ser de lágrimas, porque são coisas que fazem muito bem.

  11. Que arraso de texto! Achei muito legal ver a relação das suas mãos com a escrita e com a comunicação. Algo mágico, que acontece com muita gente (inclusive eu), mas eu nunca tinha parado pra pensar.
    Muitas coisas fazem meus olhos brilharem…eu poderia fazer uma lista imensa delas. Quem sabe não faço até um texto, assim como você? 🙂

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