Tarde quente de sábado

O dia se manteve desguarnecido com seus tons amenos se precipitando por toda a paisagem. As cores são mais quentes em dias frios. Nos dias quentes tudo arde e fica difícil admirar a paisagem que se transforma em qualquer coisa agressiva…

Dei por meus passos pelas calçadas… e ao lado, a intranquilidade de certos humanos em movimento. Tudo anda tão estranho nesse nosso contemporâneo. Alguns de nós — por medo ou insegurança — prefere atravessar a rua para evitar o outro. Eu nunca precisei de desculpas para isso… era sempre a que andava na contramão de tudo-todos.

Com um sorriso natural nos lábios e as mãos escondidas nos bolsos da calça, dobrei a esquina seguinte. A maioria das lojas fecharam nos últimos meses. As que resistiram renovam suas vitrines e foi num desses vidros adesivados com palavras num idioma-impróprio que me deparei com o meu reflexo e fui surpreendida com outra figura que não a minha… devidamente misturada ao meu eu.

Herdei dele a mania de deter as mãos dentro do bolso da calça — achava aquele gesto tão intrigante que o roubei para uso-próprio e passei a escolher as calças a partir dos bolsos. Se cabiam as mãos, serviam… não tinha bolso, dispensava. C., se divertia quando eu dizia: mas essa calça não tem bolsos — era um discurso conhecido que começava numa pessoa e terminava na outra.

Ainda hoje repito aqueles mesmos gestos e fico completamente desorientada se a calça não tem bolsos. Não sei o que fazer com as minhas mãos — me desorganizo por inteira.

Certa vez, seguíamos os dois pelas calçadas da esquerda. Ele do lado de fora — em seu gesto masculino-antigo — deu pelo meu movimento igual. Nós dois — lado a lado — com as mãos afundadas dentro do bolso. O passo largo-encaixado como se fosse uma dança apoiada no ritmo de uma canção-antiga que a gente cantarolava em silêncio, por dentro. Trocamos olhares-sorrisos e nos esbarramos um no outro — numa colisão calculada —, enroscando-se um no outro. Um abraço pela metade, em meio aos nossos passos matinais…

Ele era o meu homem-amigo-cumplice-aliado… da voz forte, das gargalhadas altas e, dos gestos intensos. Nada com ele era pouco ou pequeno, tudo era exagero… espaço em branco para ser colorido com vermelho.

Ele não era um construtor como o nonno e se vangloriava de não ter herdado esse dom. Sempre que se atrevia na oficina do homem — domador de cavalos —, era para espiar o lugar, as ferramentas que não sabia usar. Observava o trabalho do dia, admirando o cuidado com a madeira lixada-talhada. O nonno era um mestre… que rabiscava as idéias com um lápis bem apontado — com o canivete — no papel, calculando cada movimento necessário para a construção da peça desejada. Foi ele quem fabricou o meu primeiro baú.

Mio babo era bom em dialogar com as premissas… um homem de palavras bem pontuadas, com um discurso cuidadosamente arquitetado. Dava para passar um dia inteiro a tagarelar as coisas muitas da vida-realidade-mundo com ele… e ainda sobraria muito o que dizer para o dia seguinte.

Ele era um articulador… e eu gostava de me sentar à mesa com ele, para observá-lo em seu instante de pausa. Vigiava com atenção os seus movimentos. A maneira como folheava o jornal, em busca das notícias do mundo dos homens. Ele decifrava os números da economia e se divertia com o que percebia e antecipava. Não era um Capitalista… apenas sabia as regras do jogo e gostava de mexer as peças no tabuleiro. Eu conseguia ouvi-lo dizer: cheque… em meio a um sorriso ardiloso que me fazia sorrir junto.

Certa vez, ao sair da igreja — após a monótona cerimônia de casamento de um parente —, o padre veio ao encontro dele — apressado, tropeçando nos passos-degraus. Tinha algo a pedir-dizer. Nos alcançou na calçada… no meio do passo e quase sem ar, avisou que precisava falar.

— abre parênteses —
E lá estava nos lábios de mio babo o sorriso ardiloso de homem que percebe as peças e se antecipa ao jogo… sorri junto. Ele era a minha gaivota e arrulhava igual, em demorados vôos por cima do mar.
— fecha parênteses —

Vi quando tirou do bolso um punhado de notas e as entregou ao padre. Não ouvi o que disse o homem-de-deus, mas nunca me esqueci da frase inteira, bem pontuada, dita num quase sem-voz — o senhor diz amém padre, eu não. Fomos embora — de mãos dadas, eu no meio dos dois —, pelos caminhos de sempre… ladeira abaixo.

Para ele, tudo era religião-crença… fé nos homens que regiam o Sistema, baseado sempre nas mesmas idéias equivocadas. Ele me disse, certa vez, após um pesado gole de seu café matinal — se você diz amém uma vez, nunca mais escapa disso. Os bons rótulos estão nas garrafas de vinho que nos orienta para o melhor dos aromas. Quando alguém insistir em pontuar a sua realidade com um desses rótulos tolos: comunistas, capitalistas… pense num cálice e no efeito prazeroso que esse líquido provoca ao deslizar suave pelos sulcos da boca.

Se fechar os olhos agora, volto à mesa da minha infância… é primeira vez (de novo). Ouço o som do estalar oco da rolha, retirada com uma dessas engenhocas necessárias. Vejo o movimento seguinte. A rolha próxima das narinas. O líquido a cair na taça, agitada no ar. Ele questiona se eu quero provar. Não era receio o que eu sentia… apenas não me parecia convidativo. Sempre fui impulsionada pelo cheiro e a acidez do vinho não me agradava. O mesmo acontecia com o café.

Eu tinha uns dez anos e era primavera… e ele disse a frase certa-definitiva — um pesado gole de um bom vinho nos oferece a possibilidade de regressar de olhos fechados a lugares das nossas melhores memórias.

Nesse Agosto temos b.e.d.a — blog every day august.
Claudia Leonardi Mariana GouveiaObdulio Nuñes OrtegaRoseli Pedroso

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

4 comentários em “Tarde quente de sábado

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)

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