Cara A.a,
Acabou a luz no começo da noite e os gritos se multiplicaram lá fora. Eu apenas fechei os meus olhos para ouvir dentro o som dos trovões e deixei a memória intervir… Senti ressoar todas as tempestades por mim vividas. Sorri a infância, a juventude e momentos diversos da vida-adulta… Recordei a sala de aula, o escapar das luzes da manhã e o crescimento das sombras, seguido por um estrondo que fez estremecer todo o lugar. E enquanto as crianças gritavam apavoradas… eu era toda silêncio.
Nunca fui capaz de compreender o pavor que as pessoas sentem quando a natureza mostra sua força-vital. A minha zia que era mulher graúda e severa, encolhia-se toda quando o breu das nuvens crescia nos céus. Se benzia com gestos nervosos de mãos na cabeça-barriga-braço-esquerdo-direito-boca e finalizava com duas ou três palavras em uma espécie de dialeto-próprio. Eu arregalava os olhos e apertava os olhos para conter o sorriso. Mas, por dentro, eu gargalhava… meus trovões!
Certa vez, fui puxada pela mão com alguma pressa e certa violência por ela. Meus passos menores-encolhidos não queriam traçar um caminho e ela me arrastava pelos lugares. Era impossível acompanhá-la. Eu não queria ir a lugar algum. Desejava parar e observar as nuvens se avolumando por cima da cidade, os clarões se manifestando nos céus, sentir o cheiro de terra no ar e os trovões… na pele, por dentro-e-por-fora…
O vento soprava forte, vindo do mar e nos atingia com seu hálito frio-salgado-úmido… gostoso! Eu cresci ouvindo ser impossível fugir nessas horas. Mas ela queria escapar, ser mais ágil. Tentei argumentar… e outra tempestade se formou! Provei do movimento destemperados de seus lábios e senti no braço a brutalidade de seus gestos.
No meio de tudo isso… o clarão se precipitou. Era tarde demais para tramar fugas. Eu sempre dediquei especial atenção a esse momento… gosto imenso de observar esse instante de pausa. Uma espécie de quebra-ruptura. Tudo fica calmo-tranquilo, como um cuore que simplesmente para e vem um trovão… uma espécie de choque que obriga o pulsar.
E caiu a chuva-forte-densa-fria… gota por gota — uma a uma… duas a duas. Uma centena delas! E aquele som maravilhoso de água no asfalto, nos guarda-chuvas, nos jardins e pelos telhados. A cidade se liquefaz em instantes. Ah, como eu gosto quando todas as coisas mudam de estado… para o líquido.
Nós duas chegamos a casa naquele dia… com a chuva na pele. Meu corpo escorria no tapete da porta de entrada bem diante dos olhos de C., que tentou — sem sucesso — conter o riso diante de uma aborrecida cunhada, que me culpava — de maneira bastante sonora — pelo banho de chuva. Reclamava as roupas-os-pés-e-o-corpo molhados-encharcados… e do resfriado-futuro.
Enquanto eu só conseguia pensar no banho quente, nas roupas secas e na janela de meu quarto. Melhor que tomar um banho de chuva… era observá-la da janela, vendo céu e mar se misturar, embaralhando a paisagem-conhecida em meus olhos.
Hoje não trovejou por aqui… as nuvens estão altas, o asfalto permaneceu seco, os quintais e os jardins também. A memória, no entanto, troveja forte. Você ouve?
Au revoir
#projeto52
Anna Clara de Vitto – Mariana Gouveia – Obdulio Nuñes Ortega
Roseli Pedroso – Suzana Martins
Ah, Catarina, aqui não choveu hoje e não tenho esperanças que nos próximos dias chova. Mas eu imaginei trovoadas, daquelas que assustam. E eu não consigo entender como gosta delas. Eu me benzo também e peço por Santa Barbara como um personagem em seu livro.
Poxa, estou um pouco triste. Agosto acabando e a rotina por aqui vai se liquefazer. Gostei muito de te ler nesse dias. Muito bom mesmo, foi um poderoso golpe de ar. Fez-me muito bem e olha que eu nem gosto desse mês peçonhento.
bisous
Sigo dizendo que você sempre me leva para dar uma volta a partir de seus escritos.
Ler-te é a melhor pausa do meu dia. Há pouco quando chegou o alerta de mensagem, até pensei, vou fazer uma xícara de chá e enquanto esperava (coisa que eu aprendi com você) lia suas linhas.
Linda carta e eu entendo a sua relação com os trovões e invejo porque eu sinto medo. rs
Oi. Adorei o post-carta.
Quando recordamos algo é tão somente assim: com o que gravamos com mais cuidado. Talvez seja esse o motivo que nos leva a olhar para determinadas partes do nosso passado que não foram as melhores, mas ver aquelas coisas boas que sobravam e que nos davam pequenas alegrias ou o contrário. Também ocorre o contrário com alguma frequência. E isto fez-me lembrar um excerto de José Luís Peixoto, no “Livro”: “As saudades turvam o tempo; à distância qualquer coisa má, péssima, pode transformar-se em qualquer coisa maravilhosa, uma especialidade. (…) É a mesma qualquer coisa, mas as saudades já a confundiram”
Beijocas *
Ai…que lindo. Tao poético e intenso e esse fim, no lugar de C., eu também não iria me conter em ver uma mulher brava e uma criança feliz. Maravilhoso
Até mais,
Jayane Fereguetti
https://avidaodesignetudomais.wordpress.com/
De certa maneira, o seu belo texto-memória me fez entender um pouco o porquê das mulheres me atraírem tanto – são feitas de tempestades. Na minha missiva deixei de mencionar que era tão fascinado pelos raios que cheguiei a criar um hai-kai na minha adolescência:
“Quero morrer naturalmente,
em campo aberto fulminado
por um raio.”
Sei que a pergunta não foi para mim, mas ouço essa tempestade gritante em tu. Te abraço.
Aqui choveu e trovejou… Como sempre, a cada flash do céu, chamei seu nome. Foi uma chuva mansa, mas que limpou as folhas das árvores, que hoje amanheceram sorridentes.
Sempre gostei de chuva e quando pequena, deixava minha mãe bem brava por sair e me deixar banhar, voltando para casa encharcada. Adulta, passei a evitá-la mas gosto demais de observar da janela, sua atuação pela cidade. Belo texto Lunna!
Descobri este site essa semana e já estou adorando os conteúdos, são ótimos!
Parabéns! 👏
Meu Blog: Significado de Sonhar