
Caríssima Ana,
Pensava em tuas linhas quando ouvi o som de um trovão ressoar pelos cantos da casa-corpo-alma. Fechei os olhos, respirei fundo… e vesti a pele com um punhado de sensações novas e antigas — devidamente misturadas. A mente escapou e foi folhear as páginas do livro de Helder, em estado de repouso na prateleira… “agora sei que devo saber, só. As letras da chuva loucas nas costas” — e a alma começou a urdir esse diálogo silencioso contigo…
Chuva e janelas são algumas das minhas paixões mais antigas, minha cara. Penso que eu era a única menina da escola a ficar feliz com a temporada das águas. Apelidei maio de o “mês das trovoadas”… e novembro de o ‘mês dos desaforos’…
E quando os céus anunciavam Tempestades… eu corria para a janela — movimento que não cessa e se repete e repete e repete dia após dia, vida após vida.
Gosto de apreciar as nuvens se avolumando por cima da cidade. A escuridão a moldar os cenários urbanos. As pessoas em desespero, em busca de abrigo. O medo latente no fundo dos olhos.
Eu vou na contramão de tudo isso — para variar. A euforia se exibe do lado de fora da pele. Mas lá dentro — na porção mais funda do ser — uma calmaria imensa se inaugura e se apodera de minha anatomia.
Eu nunca soube explicar as sensações que se precipitam em mim durante as tempestades. Nunca senti medo ou pavor… apenas uma vontade de fechar os olhos e trazer à tona a língua dos lençóis; uma cama virada a sul, onde as gaivotas arrulham durante seus vôos de ocasião.
Os sons dos trovões parecem uma espécie de diálogo entre a realidade e o imaginário — esse barco de papel abandonado à corrente.
Eu me sinto sozinha. Trancada e liberta. Ausente da realidade e ao mesmo tempo impregnada por ela. Ainda na infância eu compreendi — num dia de chuva — o que era melancolia. Eu fechava os olhos e ouvia o pulsar dentro do peito — uma espécie de eco. Respirava fundo e apagava a vida pelo tempo incontável de um minuto inteiro. Eu entendia aquela móvel preso à parede da sala da casa do nonno que para funcionar, precisava de um impulso matinal.
Sempre gostei de ver o dia se fechar das luzes… escurecer e se perder nas voltas de um ponteiro particular — nada humano. De sentir o corpo parar e voltar à vida arrancada das veias através do som intenso de um trovão agudo…
Ouviu? Gritou de novo lá fora.
E aqui dentro o suspiro de morte e vida, vida e morte.
Tic tac
Eu tenho pavor de tempestades. Não consigo compreender essa paixão que sente por trovões.
Cada vez que o tempo fecha por aqui, eu perco o sossego, a paz. E sou do tempo em que se cobria espelhos lá em casa, escondia as facas. Minha mãe acendia velas para Santa Barbara. Geralmente acabava a luz e demorava a voltar e a gente ficava trancado, na cozinha, de mãos dadas.
Acho que quando chove eu volto a ser aquele menino assustado. rs
Adorei essa carta! Aliás, adoro muito as suas cartas, que você diz missiva.
Que delícia imaginar seu olhar para si mesma e a cidade lá fora, parece daqui que é uma mesma coisa.
Mas como o Daniel eu também não gosto de tempestades não.
beijinhos Lu
Ah, menina Lunna, algumas cartas vem para arrancar a alma e sobrevoar lugares…
Voei até aí, e fiquei ao teu lado a observar a tempestade.
Que foto linda.
Eis a alma, recolocada em seu lugar…
Estes envelopes vermelhos trazem meu sopro de vida.
Sempre imagino em tons blues.
Deu até para ouvir os trovões no ar e aqui em mim.
Sabe que eu tenho gostado muito dessa idéia de cartas publicadas no blog.
Acho que vou brincar disso também