08 — Ocupar o silêncio da casa

Cara mia,

Anoiteceu aqui dentro, cara mia… mas não olhe para os ponteiros do relógio — que insistem em dizer outras horas que não as que trago dentro do peito. Mio cuore — convertido em carrilhão — discorda das horas do dia. Acostumado que está a dar de ombros para a teimosia de Cronos — deus grego do tempo quantitativo, sequencial, ritmado… Ele pulsa na mesma sintonia de Kairos — impulsionando meu imaginário a inesperadas viagens.

É domingo no calendário dos homens, cara mia. Mas é apenas mais um dia nas minhas somas particulares, iniciadas há quase quarenta anos. Falta pouco para eu me livrar do bendito quase que tanto incomodo causa à minha pele.

Enquanto penso as linhas dessa missiva… reparei na queda da luz. O sol tentou de todas as maneiras, ultrapassar as nuvens esbranquiçadas — grandes maços de algodão — que se agarraram aos prédios para não serem levadas pelo vento que na semana que passou por mim… pareceu incansável. Gosto imenso de ouvir o uivar instigante e de apreciar o tumulto nas folhas, e nas cortinas. Fecho os olhos e me sinto Gaivota a flanar pelo ar… em queda.

Reparei que as ruas estão vazias e as calçadas recebem poucos passos. Algumas pessoas foram comprar pães na Padaria, atraídas pelo cheiro do conhecido ‘pãozinho francês’ e sua casquinha crocante. Voltam de lá a tagarelar suas vidas-futuras… enquanto eu — aqui na varanda a espiá-las —, reviro o meu passado.

Recordei a cena que escrevi em vermelho por dentro — uma das primeiras. O personagem voltando da padaria com sua bengala embrulhada para viagem. E no meio do passo, enquanto cantarolava sua alegria matinal, fez a sua travessura: arrancou um pedaço do mão e passou a mastigá-lo satisfeito até o portão de casa, onde a história do livro começa-e-termina.

Acabei trazida de volta desse ontem pelo latido de alguns cães, do outro lado da rua — eufóricos em suas trajetórias — arrastando os seus humanos — figuras mambembes —,  pelas calçadas do bairro. Gosto imenso de apreciar esses desequilíbrios… das falas humanas às caninas. Tudo é tão para os cães, que rodopiam sem cerimônia ao redor dos seus pares, costurando pernas-rabos-focinhos, obrigando a manobras desengonçadas…

E veio o primeiro trovão… estava distante e eu tive dúvidas. Verifiquei os cômodos da casa… estavam às escuras. Espiei o céu e não havia sinal de chuva  — nuvens cheias… prestes a transbordar. Nada. Tudo estava curiosamente calmo-tranquilo.

E outro trovão explodiu no ar… mais perto! O famoso clarão se impôs… e o no ar aquele cheiro gostoso de chuva por vir. Coloquei a chaleira no fogo. Outro trovão — dessa vez mais furioso, fez tudo estremecer. Recordei outras chuvas-tempestades-temporais… outros escritos e começou a euforia, por dentro. Pensei em receitas de bolo-pães… e em você, que chama por meu nome cada vez que os teus céus trovejam por aí.

Corri até o baú e mergulhei nas linhas de seu livro… dividi o meu tempo em pequenos goles de chá de cascas de limão e versos seus, que risquei pelas paredes da sala e do meu corpo. Outro trovão e a chuva caiu forte-fria, como se a estação fosse outra. Mas é Primavera… ao menos é o que os seus quintais me disseram!

Ps. Os ninhos estão cheios… e eu já os ouço piar!

Au revoir…

#projeto52

Anna Clara de VittoMariana Gouveia

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

8 comentários em “08 — Ocupar o silêncio da casa

  1. Luna,
    Escreve em três línguas. Percebi palavras em Português, Italiano e Francês. Se tivesse uma pitadinha de Alemão, estaria ideal. Talvez um Grego arcaico caísse bem. Lembre-se que cita Cronos.
    Ótimo texto.
    Bacio do Paolo

  2. Sensação de que a gente realmente pegou uma carta de uma pessoa desconhecida… aquela vontade de saber o resto da história, torcer para que tenha havido um final “feliz”.

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)

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