As mulheres que eu leio

É uma necessidade que me acompanha desde menina… contar histórias de mulheres que atravessam o meu caminho ou que observo de longe, em seus caminhos de vida.

Mulheres são figuras múltiplas e não há nada de misterioso nelas, como a literatura escrita por homens fez questão de adjetivar durante muito tempo.

As mulheres que conheci… eram figuras simples e a maioria tinha um mesmo propósito: ser feliz. Durante pesquisa feita em meus anos de estudos… ouvi dúzias de vezes essa resposta e percebi haver um medo em suas vozes, muitas vezes, opacas e fracas… quase uma não-voz.

Algumas se encolhiam tanto… outras escondiam segredos na pele — desejos soterrados. Outras se aventuravam por personagens de ocasião… eu gostava das que esbravejavam e era causa de estranheza as que se calavam, sepultando-se em seus corpos já mortos de cansaço.

Cada mulher é um mundo inteiro… e é justamente o que me fascina. Há qualquer coisa de sedutor nelas… um gesto, uma palavra. A maneira como se sentam-caminham. A forma como se vestem e observam umas às outras… e o próprio reflexo no espelho. Como pintam os olhos, as bocas, o rosto. Escolhem o brinco e o sapato combinando com a bolsa, onde cabe tudo e nada. Como recusam rótulos ou se adequam a eles. Como se transformam e se reinventam. Como se ferem e sangram… como morrem duas-três-quatro vezes… e renascem, feito a lendária Fênix.

Gosto imenso da maneira como se apresentam através do meu reflexo. É para onde olho quando escrevo. Respiro fundo e reparo nos meus traços. Levei uma vida inteira para compreender as minhas formas. Aceitar-se é um trabalho árduo e lento. Você precisa se reconhecer naquela figura que o espelho devolve. Saber exatamente de que matéria é feita e entender que enquanto o mundo dos homens aponta apenas o que é certo e errado… há muito mais a ser considerado.

Gosto imenso de ir até a pia do banheiro e com as mãos cheias de água, molhar o rosto. Faço isso uma-duas-três vezes — para baixar a temperatura da pele porque dentro é esse vermelho intenso-rubro, que ferve e nomeia o meu segundo livro-romance: ‘vermelho por dentro’. E não é por acaso… essa fatia estranha de nada.

Eu sempre reclamei dos personagens femininos escrito por homens. Raramente algum autor conseguia me oferecer algo real, no qual me apoiar. Era tudo tão falho e, sometimes, espalhafatoso. Sempre achei curioso o livro Anna Karenina… uma mulher que dá título ao livro e só. A personagem está lá. Mas a história é sobre Levin… e como essa leitura me aborreceu. Respirava fundo a cada virar de página… É um clássico da literatura, lido e fim… Esbravejei pesado com as paredes do meu quarto e nunca mais regressei a página-personagem-autor.

Tenho uma lista de personagens que me aborreceram. Por sorte, tenho outra… cheia de figuras nos quais aconcheguei o meu existir. Sou grata as autoras que debruçaram-se no papel para dar vida a algumas de minhas heroínas literárias. É preciso enxergar o outro para enxergar a si.

Por isso a palavra representatividade — que tanto incomodo causa por aí — é importante… permite a identificação, a ocupação e a transformação de um espaço. Faz saber que é possível ser diferente… e que as regras existentes podem ser adaptadas para um coletivo. Que o mundo é imenso e colorido e não é apenas para alguns-poucos… por mais que tentem nos convencer disso.

Dá muito trabalho mudar todo esse conceito estabelecido como Norte, uma coisa definitiva que nos é oferecido como modelo-pronto-único que não pode, não deve ser alterada. Mas houve quem antes de nós fizeram a sua parte… para que soubéssemos que tudo é coisa outra no dia seguinte.

Eu leio mulheres… e ouço suas vozes em diálogos que de tão-meus… inspiram-me a ouvir e dar voz a outras de nós.

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

Um comentário em “As mulheres que eu leio

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)

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