“Imaginar não é lembrar-se. Certamente uma lembrança,
à medida que se atualiza, tende a viver numa imagem:
mas a reciproca não é verdadeira, e a imagem pura e simples
não me reportará ao passado a menos que seja
efetivamente no passado que eu vá buscá-la,
seguindo assim o pregresso contínuo que
a trouxe da obscuridade à luz”
— Henri Bergson —
Caríssima C.,
Fui para a cozinha apoiada na vontade de fazer uma receita de pão. Leite morno, óleo, açúcar, sal, trigo e o fermento — tudo misturado com as mãos. Eu adoro todo o ritual… e gosto imenso quando retiro o pão do forno… Mas, você preferia outro momento. Gostava da fatia tostada na chapa, com manteiga e a nonna sabia disso. Escondia fatias de pão, para prepará-las para você. Várias vezes eu surpreendi as duas, na mesa da cozinha, para onde ela te levava pelas mãos.
Tostar pães era uma das únicas coisas que você sabia fazer na cozinha e eu aprendi com você e ao repetir seus gestos nesse estranho-futuro, lembro-me de nossas conversas no meio da tarde, do seu silêncio e de seu olhar agudo-guloso-sempre-atento.
Eu gosto imenso quando você chega sem avisar, com seus rituais de vida — que repito no automático — e se mistura à minha realidade… feito tempestade de verão — a me ocupar-povoar… sem escolher dia-hora-lugar. Apenas me pega pelo braço e me leva pelos seus caminhos primaveris… e vamos juntas caminhar a sua cidade, espiar suas pessoas, tragar do ar úmido e perfumado por suas flores de laranjeira. Ouço-te falar em mar, céu azul enquanto planeja o fim de semana e aprecia os movimentos humanos-urbanos.
Recordo nós duas… sentadas à mesa daquela padaria na rua de seu trabalho… e, você a pedir dois pães tostados. Foi preciso desprender tempo e palavras para explicar como deveria ser preparado. O rapaz em seu primeiro dia de trabalho se atrapalhou todo… e você, com sua paciência rotineira ensinou a nós dois a ser sempre gentil com as pessoas: “não importa o quanto elas te desafiem, sempre ofereça o seu melhor sorriso. Do lado de dentro você esbraveja e, pronto”.
Nunca consegui imaginar o seu interior em estado de fúria. Raiva nunca foi uma palavra sua. Seu corpo transbordava paz… e seus movimentos uma calma invejável. Enquanto eu era tempestade, você sempre foi um dia de sol, com grandes chumaços brancos de nuvens a vagar, induzidas pelo vento. Até o meu silêncio fazia imenso barulho perto de ti, que sorria… como se reconhecesse todos os meus tumultos — herdados de ‘seu menino’. Você me dizia com a voz, os gestos e o corpo inteiro: ‘menos’ — e eu latejava fúria — bufava. Pedia para eu respirar e eu reagia, reclamando não haver ar o bastante.
Sempre que estou prestes a perder a calma e transbordar… lembro-me de sua lucidez e acabo por me perder em sorrisos de orelhas. Me reorganizo em segundos. Acho que você acharia graça de meus movimentos dentro do dia e por saber-me: ‘menina das palavras’, como disse que eu seria, e eu retrucava — insistindo em contrários. Você tinha razão… mas, não me arrependo por ter tentado outros caminhos — porque aprendi com você que o importante é caminhar… E foi exatamente o que eu fiz. Aprendi lugares. Desaprendi pessoas… Fui barco à deriva, em busca de cais. E sempre que atraco em algum porto, lembro-me de ti…
À tout à l’heure!
Pelo que percebi, o seu ingrediente secreto é uma salpicada de saudade…
Dei dois suspiros aqui… pelo texto e pela saudade do seu pão.