Cara mia,
Ainda há pouco… antes de me sentar aqui para escrever-te — abri o meu velho diário e um envelope antigo saltou lá de dentro… Foi ao chão. O recolhi… detendo-o em minhas mãos por alguns segundos — enquanto espiava o passado contido em seu avesso. Recordei tudo que foi e não foi… Senti a textura na ponta dos dedos… o resto de perfume que o papel guardou. Provei de sua cor opaca — já reparou como envelhecem os papéis? É tão poético acompanhar o efeito do tempo.
Descobrei as folhas e embarqueina leitura, reconhecendo a conhecida caligrafia descuidada-irregular-indócil… difícil de ser lida que adormia suas muitas estações e fases lunares. Havia uma fotografia presa a folha, com a data e o lugar onde foi tirada: Wazemmes — 2003. Fiquei em suspenso por alguns segundos… Provei da falta de coisas não vividas — como propõe um de seus escritos, lido por mim, recentemente…
Viajei para dentro do cenário… conduzida por aquelas linhas que inundaram-me com sensações tão suas. Ultrapassei os muros do corpo-lugar-cidade. O menino de sorriso fácil falava da vida dele, de seus medos e vontades, incertezas, sonhos, ilusões. E confessava escrever do segundo andar de um prédio velho e escuro — em Wazemmes, que ele considerava um achado.
Mas, nas primeiras linhas, reclamava de um jovem músico, que se repetia em notas — todos os dias, no mesmo horário. Dizia rezar — mesmo sendo ateu — para que o infeliz aprendesse a dominar o instrumento e as notas… E o sorriso saltou do ontem e pousou nos meus lábios de hoje.
Você teria gostado de conhecê-lo, cara mia… Era o tipo de pessoa, que precisava vestir os cômodos da casa para sentí-los na pele… Uma espécie de barco encalhado a convocar ventos e marés. Não era qualquer lugar que lhe servia e se dizia amaldiçoado por ser assim. Mas não fazia o menor esforço para ser diferente-mudar.
E era uma pessoa exigente… o quarto precisava receber sol pela manhã — a melhor hora do dia para se aquecer os lençóis… segundo ele. E a sala tinha que ficar no meio do caminho para algum outro cômodo… se fosse a cozinha, um tanto melhor. Fazia questão de um alpendre para as ruas e janelas grandes onde pendurar cortinas brancas.
Eu não cheguei a conhecer a morada… não houve tempo — apenas vontade-desejo. O imaginário, no entanto, foi e voltou de lá inúmeras vezes… A cada missiva que chegava, com novidades. Acompanhei a escolha dos móveis. As inúmeras visitas a lojas. A primeira compra de ingredientes num desses empórios antigos. O ajudei a preencher os armários. A escolher a louça… pratos azuis, canecas amarelas e talheres pesados. Tomamos chuva num final de tarde e quase pisamos uma poça. Foi difícil conter o impulso e a ordem dada: comporte-se. Compramos flores para um vaso de louça… presente que chegou em uma caixa de papelão toda amassada.
E eu lhe enviei um mensageiro dos ventos — comprado numa lojinha que não existe mais. Levou meses para atravessar o oceano e ser pendurado na janela do quarto, para as noites-manhãs-tardes de ventos. Ouvimos juntos a primeira ventania enquanto tomávamos uma xícara de chá de anis com folhas de laranja — o nosso favorito.
E hoje — na sua companhia — visitei novamente o espaço… como se para lá tivesse me mudado no último minuto. Habitei por alguns segundos a fotografia. Converti a minha figura em personagem-transeunte… e vivi dentro de um fim de tarde, quase noite… a suturar levemente o cuore. Sentei-me no sofá, ao lado dele. Encostei a minha cabeça em seu ombro e lhe contei as novidades — um novo romance — enquanto esperávamos pelo apito sonoro de sua chaleira prata…
Ocupei todo o espaço… colei novos cartazes de filmes nas paredes. Grudei uma bandeira inglesa atrás da porta do quarto de hóspede e coloquei o Paul — nosso beatle favorito para cantar. Espalhei os nossos livros russos por cima do tapete de linhas. Pendurei algumas peças de roupa no armário. E o lugar pequeno-escuro, com poucos móveis, calmo e lúcido, aos poucos, se moldou a nossa anatomia.
E no quase fim de tarde… vi o sol lamber a pequena janela da frente, resvalando no vidro, deixando aquele rastro de poeira solar no ar… e ir embora len-ta-men-te pouco depois. Todo o cenário se converteu em sombras… a escorrer na parede de meus olhos fechados.
Voltei para cá… amparada pelo breu e o silêncio de quem lê uma missiva, observa uma fotografia e conversa com alguém, que compreende o silencio do meu corpo em suspenso nessa primeira-última hora e a emoção de meu corpo a soluçar como um trovão ao longe.
À tout à l’heure!
Enquanto te leio uma pipa desenha caminhos num céu de ventania… e fui lá com você e quase senti o cheiro do chá e brinquei com os lençóis no varal…
Ah, bambina mia, tu toca minha alma na emoção precisa do afago. Grazie mille!
Amo tu imenso!
Ah, eu corri e peguei minha caixinha cheia de envelopes coloridos que chegam por aqui vez ou outra. Faz tempo desde a última aterrisagem. Mas os que tenho por aqui, abraçam-me e eu sinto o perfume dos teus lugares aqui. Café, bolo, pão, pássaro nascendo no ninho.
bisou
Seus textos são fotografias que se eternizam na premissa do tempo e não se desintegram conforme os anos corram.
Lunna: suas cartas vestem nossa pele nestes dia de fria desesperança.
Que delícia de carta
Amo escrever e postamos ontem sobre elas no blog.
Nada substitui receber uma carta não é mesmo?
Adorei seu post, moça talentosa
Bjs
Uau, eu viajei e visitei cada lugar com você e sua correspondente.
Gosto de ler-te por isso, você cria imagens nos meus olhos.
beijocas