3 — das minhas insanidades

Durante os anos em Coimbra, conheci D., — homem de quase sessenta. Dono de um olhar enigmático. Figura obscura-abstrata. Seu desenho não cabia dentro do corpo que habitava. Era um homem de poucas palavras… com talento para ouvir o outro…

Seu ambiente de trabalho era o porão de sua casa, onde os cheiros se multiplicavam. Do café que ele bebia antes de começar a sessão — ao uísque que o ajudava com as notas que deitava em um caderno de couro marrom…

Em suas prateleiras enfileiravam-se livros de grandes pensadores… clássicos da literatura — velhos e gastos. Os mais novos eram de autores desconhecidos do público, que ele recebia para cinquenta minutos de conversa. Cheguei a pensar em ‘moeda de troca’ durante as sessões.

D., foi indicação de um professor, depois de comentar que precisava urgentemente retomar a terapia — estava prestes a perder a sanidade (novamente). 

Assim que me sentei na velha poltrona de couro gasto… ele se posicionou em seu lugar, cruzou as pernas e disse vamos primeiro as respostas porque as perguntas sempre chegam depois, como as aves que voltam para casa no final da tarde”

Reconheci de imediato a fala — um verso de Manoel Pina. Foi o que me fez ficar!

D., tinha um cão — um Labrador negro chamado Jerry — que se sentava ao seu lado e ganhava afagos durante as sessões. Os dois me espiavam com atenção e cuidado, mas confesso que era com o cão que eu traçava o meu diálogo. Era em seu silêncio-canino que eu confiava minhas falas… 

Me despedi de D., e de seu cão… no verão de dois mil e dois. Ele me disse com sua voz rouca-pouca: “eu sei o que você procura, mas lhe aviso: não existe cura, tratamento ou remédio… para a loucura. O mais saudável é enlouquecer. No entanto, é preciso algum cuidado: são poucos os que são de fato capazes de se permitir a loucura. A maioria de nós teme enlouquecer porque não é todo mundo que consegue sonhar no escuro”…

Guardei a frase no bolso e, atravessei o oceano!


b.e.d.a — blog every day august — um desafio que surgiu para agitar os dias
de abril e agosto nos blogues e comemorar o Blog Day

Alê HelgaDarlene Regina Mariana Gouveia
Mãe LiteraturaObdulio Nuñes Ortega

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

15 comentários em “3 — das minhas insanidades

  1. Que personagem interessante.
    Estava com saudades dos seus diários de insanidade, eram os meus posts favoritos por aqui. Que bom que os retomou. Vai ser legal acompanhar suas sessões de terapia de novo.

    beijokas

  2. Toda vez que eu leio você, e fazia tempo que não fazia isso, fico em dúvida, se e real ou não. Você joga muito bem com as palavras e algo me diz que fica satisfeita com a confusão que provoca em leitores como eu.

  3. Eu já quero ler o seu próximo livro, sai quando?
    Esse deve ser o homem que mora na casa da frente. Aquele médico que atendeu Alice e perdeu a esposa em um acidente.

    Sabia que seria escrito algo mais a respeito dele quando li.
    Curiossisima

    Bacio!

  4. Palavras são livres em nossa essência, não dissimulam, não se deixam enganar, emanam quando querem. Ebulam dentro da gente pois sabem que não precisam de chave para atravessar outras esferas, elas simplesmente explodem, quando dentro fazem morada. E como disse Bukowski, ” a menos que saia da tua alma como um míssil… não o faças”.

    E você faz isso sempre querida Lunna e transforma tudo que toca.
    Maravilhoso esse personagem e aposto como já faz parte de algum livro.

    Gr. Bj. Lunna!

  5. Querida Lunna, ler te assim, ao meio da tarde, ou ao crepúsculo, é para mim sempre um momento de silencio. Calo a minha alma para ouvir a tua. E me faz tão bem! Voar um pouquinho, sair daqui e parar aí do teu lado, com atenção, para ouvir-te.

    Eu nunca fiz terapia, sabe? Mas imagino que não deve ser fácil escolher alguém em quem confiar a própria alma. É disso que se trata, não? E entendo que muitos ficaram em dúvida entre real e imaginário ao ler-te. Eu não fiquei, sei que é fruto do seu olhar.

    Obrigada, sempre

    Baci

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)

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