Em São Paulo… depois de algumas tentativas frustradas de retornar à terapia, recebi uma indicação e agendei um ‘encontro’. Sai de casa pouco depois das cinco. Terça-feira de sol quente e chuva forte no meio da tarde. Caminhava a passos curtos, enquanto desviava dos humanos apressados que, certamente, me consideravam um obstáculo…
Cheguei ao meu destino… um luxuoso prédio na Avenida Paulista com seus vidros azuis. E me lembrei da canção de Chico Buarque Luz, quero luz, Sei que além das cortinas / São palcos azuis / E infinitas cortinas / Com palcos atrás / Arranca, vida Estufa, veia / E pulsa, pulsa, pulsa / pulsa mais…
Enquanto o elevador subia ao vigésimo segundo andar, observava meus movimentos de vida. Encher o peito de ar. Fazer silêncio. Fechar os olhos e lembrar que a vida é feita de muitos caminhos, mas nem todos são para os nossos pés.
Passei pela porta às dezoito horas e cinquenta e sete minutos. Fui recebida por uma senhora que conferiu meu nome em sua agenda e sumiu pela porta a esquerda, com uma conhecida plaquinha prateada com o nome de W., seguida por seu sobrenome e a profissão: psicanalista.
Revisitei meu passado enquanto esperava. Adentrei ao espaço de análise pouco depois. Decoração clássica… com móveis escuros, pesadas cortinas igualmente escuras, tapetes pelo chão… alguns vasos a preencher os cantos com galhos secos-artificiais. Tudo coisa alheia… pensada para ser parte da psicanalista — não da mulher, que fica do lado de fora.
O divã foi colocado perto da janela — para os que gostam de se deitar enquanto narram seus dramas. Duas poltronas de couro preto foram posicionadas de frente uma para a outra… bem no meio do ambiente, com uma mesa de centro entre elas. Distância necessária para que o paciente se lembre de sua condição e não se atreva a ultrapassar os limites. Na teoria: funciona. Na prateleira, atrás de uma mesa de vidro, havia um punhado de livros em estado in-to-cá-vel.
W. é uma senhora elegante… seu nome se exibe — seguido de dois sobrenomes — nos cinco diplomas espalhados pela parede cor de creme. Tem os cabelos bem cortados… usa roupas caras e um punhado de jóias douradas nos dedos-braços-pescoço-e-orelhas. Tem o olhar atento às coisas frágeis. Sua fala é cuidadosamente planejada e, às vezes, deixa existir um sorriso ávido-arisco em seus lábios vermelhos.
Sua especialidade é saber ouvir o outro, sem interrompê-lo. Toma nota de tudo. Nada escapa de sua fiel companheira: uma caneta Parker, que foi dada a ela pela mesma pessoa — o marido, certamente — que lhe deu um dos brilhantes que ostenta na mão esquerda.
Escolhi a poltrona por razões óbvias… coisas que eu trouxe da infância. Gosto da maneira como meu corpo se acomoda e relaxa. Nunca gostei de divãs… que me coloca de frente para o teto e seu branco nada singular. Eu gosto de conversar com o teto quando acordo-abro-os-olhos pela manhã, e espio as ranhuras e ralho com elas. Com uma pessoa o diálogo tem que ser olho-no-olho para que eu possa compreender a porção humana que há em mim e no outro.
W. se sentou imediatamente à minha frente, com seu bloco de notas e caneta em mãos. Olhou-me por alguns segundos, numa espécie de varredura da minha matéria, o que me fez sorrir. Parecia esperar que eu dissesse alguma coisa… e como não o fiz, ela se precipitou a mim “a pessoa que te indicou me disse que tem apego pelo abismo. Mas não entendi se você é propensa ao salto ou a queda“…Não sorri, apenas olhei para dentro e repeti a deliciosa frase de Baudelaire, que escrevi nas paredes de meu corpo ainda na primeira década de vida: acredito desde sempre que, se uma pessoa vai abandonar o silêncio e se dedicar ao barulho… é preciso ser como o Albatroz na poesia de Baudelaire:
— busca a tempestade e ri da flecha no ar —
b.e.d.a — blog every day august — um desafio que surgiu para agitar os dias
de abril e agosto nos blogues e comemorar o Blog Day
Alê Helga – Darlene Regina – Mariana Gouveia
Mãe Literatura – Obdulio Nuñes Ortega
Seus textos me inspiram leituras transversais, então muitas vezes os leio de forma metafórica, se é que me entende 😉
Até!
Eu em lembro de quando você mencionou W pela primeira vez e eu fiquei muito curiosa para saber como seria a sua relação com ela. Depois você deixou de escrever a respeito, mas veio a fanzine (aquela que publicou mensalmente durante um ano) e soube que ela tinha percebido suas habilidades e agora ao ler esse texto, percebi que W segue sendo um mistério para a senhorita e me diverti pra valer.
Que delícia de post.
Me lembrou Herbet: “hoje joguei tanta coisa fora…”
Menina Catarina, gosto da forma como os detalhes chegam aos seus olhinhos sempre tão atentos. E no seu lugar também escolheria a poltrona. Esse negócio de divã é ruim. Dá um sono na gente e a terapia fica para outro dia. hehehehe
bjs
Oi, Lunna. Tudo bem?
Lendo você, fiquei me perguntando porque eu nunca fiz terapia? Acho que me faria bem. Claro que não prestaria atenção em nada do que você descreveu e acho que ficaria tensa e demoraria a dizer alguma coisa. Sou uma pessoa bastante introspectiva.
Mas acho realmente que me faria bem.
Vou colocar na minha lista de coisas futuras a se pensar
Um beijo
Fernanda.
Fiquei imaginando aqui, você olhando para a foto do gato e o nariz coçando.
bacio bella.
Lunna, o bom de se ler você é sentir a ação de cada acontecimento da postagem como se fosse agora e comigo.
Bacio,
Manô
Lunna me encantei com cada detalhe do seu texto. Me sentei com você naquela poltrona. Certamente W. conseguiu me fazer olhar, pensar e responder entre linhas. Adorei seu texto. Abraços