Às vezes, para escapar da realidade e suas coisas demasiadamente humanas… eu faço uso de certos artifícios para distrair a mente — ocupando-a com bobagens-particulares. Há quem se embebede, mas, como eu não sou adepta desse hábito peculiar, prefiro colocar a água no fogo e aguardar pelo precioso som da chaleira que apita estridente na cozinha e se espalha por todos os cômodos da casa.
Hoje eu me surpreendi espiando a porta… faz algum tempo que tenho a impressão de que algum vizinho irá aparecer com uma xícara, em mãos para compartilhar um momento de paz.
Preparar uma xícara de chá… impõe uma pausa natural nos ponteiros da realidade. É ritual simples e agradável que me permite deixar todas as coisas que não acrescentam absolutamente nada à minha realidade, para depois.
Eu tenho (quase certeza) de que a paz mundial seria facilmente alcançada se duas pessoas se predispusessem a se sentar e saborear uma boa xícara de chá, em silêncio… percebendo todas as coisas a nossa volta. Desde o aroma que o vapor despeja no ar às emoções que precipitam na pele quando um pesado gole é levado a boca.
Nesse fim de tarde nublado — com alertas laranjas de temporais pipocando no celular — fui até a prateleira e voltei de lá com um livro que há tempos não lia. O livro do chá, de Kazuko Okakura… foi uma das muitas descobertas feitas nas prateleiras da Biblioteca Mário de Andrade. Não foi o melhor livro que li a respeito, mas gostei imenso das citações que encontrei nele.
A cerimônia do chá é algo bem simples e ao mesmo tempo completamente revestida de complexidades várias. A começar pelo local onde se dá o ritual, passando pela xícara ou vasilha usada para beber essa combinação de água e ervas.
Faz algum tempo que eu me dedico a estudar essa Arte e seu fabuloso ritual. A primeira vez que eu ouvi falar dele, foi através da nonna, que fizesse chuva ou sol, preparava a sua preciosa xícara de chá. Era a maneira dela de saudar o anoitecer… E eu passei a imitá-la… preparava a minha xícara de chá e saia com ela pelos quatro cantos da casa, indo até a janela espiar as mudanças de tons.
Eu li diversos livros a respeito, assisti a inúmeros documentários e preparei dúzias de xícaras de chá, seguindo as mais diferentes orientações. Percebi que um ritual é particular… você pode ler, aprender… mas, em algum momento, precisa assumir o controle da nau.
Para mim o chá é um culto à beleza… porque nos obriga a ir mais devagar: a abandonar as nossas rotinas, e silenciar um pouco. É preciso dar atenção a cada um dos nossos movimentos e aos do mundo à nossa volta. Eu me sento, respiro fundo (como um monge) e relaxo… cada um dos meus músculos e nervos. É um momento apenas meu e geralmente penso em poesias e seus poetas.
Preparar uma xicara de chá requer respeito… pelo tempo da fervura da água e da infusão. Não é algo que se possa apressar. Enquanto espero, eu tomo notas de alguns pensamentos que surgem ou leio páginas inteiras de livros. Só não penso nas coisas da realidade… isso fica para depois.
A nonna dizia que enquanto se espera por uma xícara de chá… é possível tocar a reticência de Confúcio, a malícia de Lao-tsé e o aroma etéreo de Sakyamuni. Mas eu não sabia absolutamente nada a respeito desses senhores, por isso, precisei pesquisá-los… com uma xícara de chá, ao alcance das mãos para pequenos goles aquecidos e foi uma viagem.
Descobri que Confúcio foi um filósofo chines e suas idéias serviram de Norte para a sociedade chinesa. Autor de grandes frases, pautadas por suas reflexões como: o homem não se esconde… Uau! Isso me fez refletir a respeito do homem ocidental desse século: que não se exibe… é um espécime preocupado com seguidores, ocupado em ter opiniões acerca de tudo e todos, influenciado por um bando de ninguéns e que diz amém para qualquer um que finja ter escalado o Everest, e lhe diga como fazer, de preferência, oferecendo atalhos.
O chá é um momento que nos leva de encontro a nossa interioridade
e a importância que há nisso é imensa e significativa.
Pesquisando eu descobri algumas lendas interessantes. Soube que no tempo antigo, os Imperadores costumavam conceder alguns preparos raros de folhas aos Ministros mais importantes como recompensa, para que eles soubessem o real valor das coisas e jamais se esquecessem disso. As folhas eram preparadas no vapor, trituradas num pilão, aglutinadas e cozidas com arroz, gengibre, sal, casca de laranja, condimentos, leite e, algumas vezes, cebola!
Ao saber disso, me lembrei da quantidade de vezes em que recolhi folhas do chão, gravetos e me senti a mais importante das criaturas. E do momento em que escolhi a minha primeira xícara. Ao chegar a casa, no final daquela tarde, fizemos o nosso ritual e ouvi de mio babo: os filhos crescem mais depressa do que somos capazes de acompanhar.
Lao-tsé escreveu… existe algo que tudo contém, que nasceu antes da existência do céu e da terra. Quanto silêncio! Que solidão! Apresenta-se só e é imutável. Gira sem perigo para si próprio e é a mãe do universo. Não sei seu nome, de modo que chamo de “caminho”. Com relutância o chamo de “infinito”. A infinitude é fugacidade, fugacidade é evanescência, evanescência é reversão”.
Foi a maneira dele descrever o local onde realizava a sua cerimônia do chá porque todo lugar é sagrado, mas onde o nosso corpo será alimentado é ainda mais sagrado. E nos apegamos tanto ao que é supérfluo que nos esquecemos disso. Cada vez mais, o homem ocidental se preocupa menos com as suas refeições, que são feitas às pressas, sem que se importem com o que estão consumindo, o tempo de preparo ou a origem dos ingredientes. O resultado é uma sociedade cada vez mais dependente de medicamentos.
E eu, como de costume, vou na contramão de tudo isso e sigo os meus rituais… cada pequeno gole é um momento sagrado para mim… principalmente quando o crepúsculo cresce para cima da minha varanda e eu posso referenciar todas as minhas ancestrais, a quem devo muito do que sou.
b.e.d.a — blog every day august — um desafio que surgiu para agitar os dias
de abril e agosto nos blogues e comemorar o Blog Day
Alê Helga – Darlene Regina– Mariana Gouveia
Mãe Literatura – Obdulio Nuñes Ortega
Que texto maravilhoso!
Depois de um dia agitado como o de hoje (para mim), ler este texto dá a mesma sensação de participar da Cerimônia do Chá. Seu blog é uma descoberta!
Fraternal abraço!
Namastê!
Independente do ritual do chá, o ser humano precisa de rituais.
A pausa, o viver sem pressa!
Os orientais possuem também o ritual do banho, o sexo tântrico, o ritual das armas, do poder, yoga, etc… tantos, que até acho que a grande finalidade destes rituais, é não deixar o espírito ocioso, afinal, dizem que quando a cabeça está vazia o “diabo” faz a festa! 🙂
Beijus,
Você já sabe como estou agora… com minha xícara de chá curador… o cheiro do hortelã menta invade o quintal enquanto uma lua magnífica surge esplendorosa por detrás do telhado da vizinha.
AMO chá!
Pois hoje à tarde me presenteei com uma xícara de chá branco com flor de laranjeira. Estava “sozinha”, em pena livraria, rodeada de mais gente, mas foi um momento de relaxamento e paz… Mesmo solitário um chazinho vale a pena…
Bj
Lunna, adorei usufruir das suas teorias impossíveis sobre o chá!
E gostei mutio de tudo que li e concordo com você, certos rituais são sagrados mesmo.
Beijos!
É um momento de desacelar da vida que levamos e concentrar e nós mesmos, nós pensamentos que habitam em nós nos instante de (suposta) tranquilidade…
Fique com Deus, menina Lunna.
Um abraço.
Lunna, que lindo esse post!!!
Me senti compartilhando de uma suave xícara de chá com você.
O tempo chegou a parar…
Ótima forma de se começar o primeiro dia de primavera 😉
Obrigada
Beijão
Aloha!
Que lindo, queridaaaaaaaaaaaaaaa!
Agora eu entendi por que você gosta tanto de chá!
^^
Realmente, quando um chá é bem feito, ele faz um bem pra alma!
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Esse livro me marcou bastante, por isso está no blog ^^
Aloha!
Ain Lu, que saudades de tomar chá com vcs…
Foram chás deliciosos…
Aceita um chá?! Hoje, chá gelado, está quente demais aqui!!! rs
Beijos…..
Lunna, você saber servir chá como ninguém, mesmo que seja pela imaginação de uma tela de computador… E acredite, seu texto tem aroma de chá de jasmim.
Beijos.
Adivinha se não fui fazer um chá de erva cidreira logo após ao ler seu texto-infusão?