37 — Cultivo regularmente as minhas memórias

São Paulo, Biblioteca Mário de Andrade, meio de tarde… ano 2003.

Caríssimo,

Meio de tarde, parte de um todo. Um pouco de nada – muito de tudo. Estou cá, ocupando uma das mesas desse espaço contraditório  que leva o nome do homem que me conquistou com sua louvação da tarde, no final do ano de mil novecentos e noventa e um.

Por cima da mesa, alguns livros espalhados na tentativa de decifrar a literatura local, há muito o que saber. Se há tempo, não sei, mas estou empenhada nessa tarefa particular. Li Cecília Meirelles pela manhã e me encantei com sua Solombra… A palavra em si provocou um incêndio em minha pele-alma, provocando barulho em meu silêncio. A leitura fez o meu pensamento voar para além das figuras que se deixam exibir à janela. Por alguns segundos, os meus olhos não conseguiram se prender às frases que ponteiam a história que escolhi para ler nesse dia de infinitas horas…

Eu gosto imenso deste local… das mesas esparramadas ao longo da imensa sala. É tão raro vê-las ocupadas. As paredes descascam… As marcas do descaso estão evidentes no cheiro dos livros — alguns estão úmidos e o cheiro de mofo reina. Não me surpreenderia se encontrasse uma traça. Lamentei, é claro…

Soube que o acervo da biblioteca foi distribuído pelos quatro cantos da cidade — soluções dos homens que ainda não perceberam a importância da Cultura. Por aqui, há essa mania de dizer que Arte é isso ou aquilo e que artista é vagabundo sustentado por governos e suas leis. Se ouvisse as discussões a respeito, começaria a riscar frases e mais frases prontas que ecoam de boca em boca.

É uma gente que não pensa, apenas repete-se o que diz o bobo da corte, que vai a frente — quem sois vós? Lembra alguma coisa? Se não tivesse tanta preguiça com as obras shakespearianas, confesso que lerei Rei Lear novamente.

Uma das coisas que me aborrecem nessa cidade são as agressões diárias.  Há no alto desse prédio uma combinação de caracteres grafados. Foi um desafio de gangues e há quem chame de Arte e não estão errados… Mas, para mim se trata de um desaforo que engulo todas as vezes que me aproximo do prédio fincado entre a São Luiz e a Consolação…

Esse cenário se tornou um refúgio para mim. Conheci algumas pessoas interessantes, outras descartáveis. Me envolvi com um grupo de teatro e participei de uma oficina de poesias, com um homem que se diz poeta e inventor de palavras. Um bufão, meu caro.

Percebi, que apesar de todos os dissabores, é fácil escrever sobre coisas várias, sentada nessa mesa. Deve saber e por certo, sabe… Que escolho sempre a mesma, primeira fileira, do lado da janela. A frente há um espaço de transição — um intermezzo — antes da fileira seguinte, que continua em linha reta até a frente (ou seria os fundos?) da enorme sala. É engraçado porque me remete ao tempo escolar, faltando apenas a queridíssima A., com quem falei na semana passada, contando as novidades de sua cidade-país. Ela sorriu ao saber das trocas que fizemos. Nós duas atravessamos o oceano em direções contrárias.

Bem, vou voltar a leitura dos meus livros… Espero notícias suas, conte-me a respeito do vaso seco que encontrou no apartamento alugado. Resolveu regar para saber que planta havia ali antes de você? Espero gentilezas suas…

Bacio

b.e.d.a — blog every day august — um desafio que surgiu para agitar os dias
de abril e agosto nos blogues e comemorar o Blog Day

Alê Helga – Mariana GouveiaMãe Literatura 
Obdulio Nuñes Ortega – Vanessa

10 respostas para ‘37 — Cultivo regularmente as minhas memórias

  1. Lua Nova

    Já me incomodei com as garranchos nos prédios, mas agora não me importo mais. Acredita que penso em mensagem cifrada e imagino que são códigos deixados para outras pessoas. Mensagens secretas que apenas alguns de nós entende. rs

    Eu sei que isso parece loucura.
    Talvez seja

  2. Catarina Barros

    Que delícia de carta, escrita anteriormente a reforma da biblioteca. Lembro que você escreveu a respeito, de como ficou o lugar e do resgate dos livros.

    Preciso conhecer esse livro Solombra, de Cecília. É a segunda vez que leio a respeito dele aqui. Antes você falou algo a respeito da palavra, mas não me lembro o que disse.
    De qualquer maneira, amo Cecília, mas tenho preferência pelos livros de viagem.

    besitos

  3. Carol Linden

    Lunna, é sempre prazeroso dar a mão a você e sair pelas ruas te acompanhando, ainda mais quando o destino do passeio é essa Biblioteca.

    Bom demais!

  4. obduliono

    “‘Quando ouço alguém falar em cultura, saco o meu revólver’. Essa frase faz parte de uma peça antinazista de Hanns Jost, encenada em 1933, ano em que Hitler assumiu o poder Acabaria sendo atribuída a Herman Göring, chefe da Gestapo e braço direito do Führer. Passados quase 100 anos, não é que vemos acontecer no Brasil quase vinte anos depois deste seu texto, Lunna?

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