Escrito à mão…

Meu primeiro rascunho, no sentido de produção literária, aconteceu em sala de aula… o lugar mais impróprio e inadequado para uma criatura que não aprendeu a se misturar e não se deixou forjar por aquele espaço irregular, com suas cadeiras em fila, quadro negro e o espaço mal definido destinado com exclusividade aos professora… era uma espécie de tablado, que fazia dos que ali desfilavam, uma espécie de atores, a encenar suas performances equivocadas.

Eu era uma daquelas meninas que ficavam no canto, desejando não ser notada e passar despercebida. Eu tentava cumprir o papel de sobreviver dentro do esquecimento que era algo poético e pitoresco… Gostava imenso da idéia de ser sombra no chão de ninguém. Muito mais atraente, que ser um holofote, a se projetar por cima daquelas figuras inertes… alheias e que me importunavam com seus espetáculos circenses.

E como não fazia uso do meu caderno de geografia, porque P. preferia os chatos livros didáticos, com seus escritos enfadonhos e mal elaborados… pude ocupar aquelas linhas perfeitas com o que considerava ser uma espécie de romance policial… apaixonada que era pelo estilo de Agatha Christie e outros.

E eu acabei construindo a minha história ao espiar a existência peculiar da menina loira, que vivia a enrolar os cabelos entre os dedos e as mascar goma com a boca aberta. Ela ocupava a fileira ao lado da minha e era considerada a garota mais bonita da nossa turma. Um dos nossos professores não se cansava de elogiá-la. Ela era perfeita em tudo: a maneira como posiconava os pés, as pernas, as mãos, o corpo todo.

Eu me divertia vendo-a escrever o nome, dúzias de vezes, nas folhas do caderno de geografia… tomando o cuidado de adicionar o sobrenome do jovem por quem se dizia apaixonada. O tal príncipe encantado era um garoto mais velho, que fazia parte do time de futebol do colégio e, acreditava que as garotas eram… exatamente como uma goma de mascar…

Ela não foi a minha primeira personagem, mas durante anos acreditei nisso. E só fui descobrir o meu engano ao revirar o baú de C., e encontrar um punhado de contos, escritos na infância… inspirados nas vizinhas da minha rua.

Mas o tal romance — escrito à mão — ficou pronto… e acabou lido pelos colegas de turma após ser surrupiado de meu armário… fechado com cadeado e que eu nunca considerei confiável. Dias depois, após vagar de mão em mãos, acabou na mesa da professora de literatura, que me chamou a sua sala para uma conversa, da qual participou o Diretor do jornal do grêmio estudantil. E a minha história acabou publicada, em capítulos, durante as semanas seguintes…

O anonimato, ao qual eu era grata, se evaporou… e eu me vi imersa na realidade de olhares atentos a todo e qualquer movimento feitos por mim. Foram dias de fúria… todos queriam saber qual seria meu próximo passo… sobre o que-quem eu escreveria.

E. fez questão de revelar-se como fonte de inspiração para o meu escrito sem se importar com o desfecho trágico da personagem, morta na noite do baile de primavera do ano de mil novecentos e noventa e oito. A história em si, era uma lenda contada ao longo dos anos pelos corredores do nosso colégio. Fato é que durante anos o baile não foi realizado por causa do crime que seguia sem solução.

Por causa de “certe cose” – título que eu escolhi para o tal romance – acabei convidada a escrever uma peça teatral para a festa de final de semestre no colégio –, com a prerrogativa de não poder refutar tal convite… Entrei em pânico, e adoeci. Uma semana inteira em casa, sofrendo tudo e nada. Sentia calafrios, cólicas, desarranjos intestinais, refluxo, indisposição e outros sem-fim de sintomas. Minha mente se converteu em deserto arredio. Fiquei sem chão, sem mundo, sem mapas, em aspas, sem sossego…

Me amaldiçoei por semanas. Mas não resolveu… Eu não fui esquecida — como pretendia –, tampouco abandonada em meus cantos. Não desistiram de minhas linhas e todos dias ouvia, alguém disparava contra mim: e aí, quem de nós, será o seu próximo personagem?

E, a história aconteceu quando deixei de me incomodar com o tal convite… durante a aula de literatura. Acabei por escrever dúzias de palavras, que foram exaustivamente ensaiadas e apresentadas, em uma noite de presenças…

Todas as cadeiras do auditório da famosa sala vinte e um foram ocupadas: pais, professores, alunos… menos a mim que acusei uma forte dor de cabeça… inventada no último minuto, que me permitiu ficar em casa, trancada em meu quarto, ouvindo Chopin, na companhia de uma enorme xícara de leite caramelado.

Soube na segunda-feira seguinte, que os aplausos se multiplicaram pelos espaços, sendo ouvidos ao longe. Dei de ombros! Eu nunca me importei com aplausos. Tenho especial preferência por vaias… são muito mais sonoras – retumbantes e significativas. Mais agradáveis. Nos liberta do sucesso que nos leva a lugar nenhum, apenas ilude e afaga o Ego, difícil de ser domado depois disso. O fracasso é um grande mestre — o melhor dos estimulantes.

A minha primeira peça foi um estudo da turma com a qual eu convivia. Professores, alunos, diretores. Fiz um esboço das situações mais lamentáveis que eu presenciei ao longo daquele ano. Engraçado como olhar nossos próprios gestos, nos diverte. Eu só pensavam no personagem de Shakeaspeare… o Rei Lear, enquanto observava aquelas versões diminutas-caricatas.

Uma coisa me marcou de maneira definitiva… o desconforto de ter que atender a uma encomenda; durantes dias eu acreditei que não conseguiria. Foram dias difíceis. Sofri o suficiente por uma vida inteira e, no ano seguinte, abandonei as letras e decidi cursar psicologia!

b.e.d.a — blog every day august — um desafio que surgiu para agitar os dias
de abril e agosto nos blogues e comemorar o Blog Day

Alê Helga – Mariana Gouveia – Mãe Literatura 
Obdulio Nuñes Ortega – Vanessa

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana... degustadora de café. Figura canina e uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Paciência é algo que me falta desde a infância. Mas sobra sarcasmos para todas as coisas da vida que fazem mais barulhos que cigarras nos troncos das árvores. Aprecio o silêncio e falas cheias, escreve-se em prosa por apreciar a escrita em linha reta. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

7 comentários em “Escrito à mão…

  1. Lunna compreendo muito bem essa sensação. Eu sou uma formigua que vive no buraco, ou seja, nos bastidores. Eu entrei para um curso de teatro por acreditar que isso iria me ajudar. Lendo engano. Quando tive de encenar para todos, quase morri. Foi um desespero. Senti tudo o que descreveu. Desejei que o chão se abrisse e me engolisse.

    Bello!
    Bjs

  2. Ah, carissima… não adianta tentar fugir do nosso ‘destino’ – não gosto desta palavra – ele nos espera, sentado, calmamente em uma pedra – lembre-se aí do que escreveu o Drummond – pitando um fumo de corda, na esquina mais a frente… e ainda ri da nossa carinha. Olha você aqui, escrevendo maravilhas para a gente.

    bisous

  3. O processo pode ter sido difícil e não tenho duvídas de que foi dolorido na maior parte. Mas te levou a psicologia que te develveu a literatura.
    Valeu a pena e hoje você compartilha seus escritos com nós, seus leitores.
    Eu gostei de saber dessa sua primeira aventura.

    Ps. Seria muita ousadia perguntar se tem a versão em Português?

    Bacio.

  4. Mesmo solidária a dor sentida na época, não me vem outra palavra agora para descrever essa história que li quase num só fôlego: Belíssima!

    Me identifiquei com a história até um certo trecho: é que no meu caso não arrancaram o caderno das minhas mãos…

    Bom final de semana!
    Beijos,

  5. Eu sempre exibi meus cadernos, escrever nunca foi uma opção no meu caso. No seu, a coisa aconteceu assim, parece, como um encontro fora de hora com a vocação. Mas, pelo jeito, tudo se ajeitou, hum? Depois, combinado está: quem não gosta de um aplauso?

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)

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