* da voz das coisas

Só a rajada de vento
dá o som lírico
às pás do moinho.

Somente as coisas tocadas
pelo amor das outras
têm voz.

— Fiama Hasse Pais Brandão

Foi na escola primária que eu aprendi o que era dor-medo… estava no segundo ciclo, quando a professora apresentou a “menina nova” à turma e lhe mostrou onde se sentar — apontando o lugar vago, ao meu lado.

Olhos opacos. Lábios secos. Braços cruzados a frente do corpo e aquele não-andar encolhido…  disciplinado a base do castigo. Era uma existência dolorida  — nunca tinha visto alguém tão encolhido dentro de si.

Dor alheia… que eu tomava emprestado, sempre que resvalava nos olhos escuros da menina, sem voz-alegria… que vagava desorientada pelos cantos da escola, na hora do recreio.

Era a única criança que eu não via correr ligeiro para os braços do pai — que esperava por ela, no portão. Ele era um homem estranho. Não se misturava aos outros pais, que sempre queriam falar das crias, numa espécie de disputa pelas melhores notícias do dia. Filhos artistas-arteiros-esportistas-futuros-gênios. Ele não… enfiava as mãos nos bolsos do jeans e se isolava do bando. Encostava o corpo em qualquer superfície, acendia o cigarro e se deixava engolir pela fumaça que despejava no ar. Vigiava os ponteiros do relógio no pulso e não escondia a insatisfação. Não queria estar ali. Não parecia disposto a ser pai.

Ela grudava as mãos nas alças da mochila, assim que o via… caminhava sem vontade em sua direção. Mantinha os olhos baixos, rentes ao chão… como se encara-lo fosse o pior dos pecados. L., parecia se encolher um pouco mais a cada passo — até quase desaparecer.

Aquilo era medo-pavor-receio! Eu conseguia sentir os pequenos tremores na pele e as lágrimas represadas. O desconforto nos músculos e nervos. Tão diferente do que eu sentia. Era uma alegria avistar um dos meus. Caminhar de volta para casa… na companhia deles era o que de melhor me acontecia. Sentia-me segura novamente — longe daquela atmosfera poluída.

Ela tentou se aproximar de mim. Mas eu não permiti. Não tinha talento algum para convivência. Gostava da minha generosa porção de paz, no canto oposto das coisas e suas figuras miúdas.

Um dia, alguma coisa mudou… me lembro de vê-la aos risos, com o bando da Turma A. Ela acreditou que tinha conquistado um lugar para si, ao lado das meninas maquiavélicas, que eram uma espécie de lenda pelos corredores e salas. Muito se dizia. Nada se comprovava.

A menina ingênua e medrosa passou a ser a quinta integrante do bando e a dor que sentia, deixou de ser maior que seu corpo frágil-manchado-de-roxo. L., passou a se divertir. Me lembro de ver qualquer coisa de malícia em seus lábios, em nova fase: um sorriso escuro-sombrio e um olhar perverso — como se tivessem lhe dado o direito de se vingar… 

O alvo favorito do bando era um menino-gordo, com problemas renais da Turma B. Ele vivia os dias em estado de espera. Precisava urgentemente de um rim-compatível.

Ele era grande-desajeitado… vivia cansado e com aparência cadavérica. Pouco falava. Pouco se movimentava e gemia quando as pontadas nas costas se tornavam insuportáveis. Passava mais tempo na enfermaria, que em sala de aula. E seus horários eram cronometrados pelas drágeas que o mantinham vivo, enquanto a fila do transplante não andava.

Como eram cruéis com ele… havia outros alvos. Mas o pobre menino doente, era uma espécie de laboratório para as maldades praticadas pelo bando.

(abre parêntese)

Certa vez, os nossos olhares ficarem presos-ata-dos por um segundo. Novamente, eu estava — inconscientemente — me antecipando ao fim. Vi seus lábios se mexerem. Não sei se era palavra-frase ou apenas a minha imaginação que a espiava com atenção e cuidado… curiosa por desvendar o mistério que era. Seu coração não era puro, eu sabia.
…era uma pedra cravada no centro do peito.
Cada um sobrevive à sua maneira, aos horrores que atingem o corpo.

(As dores do crescimento furam os ossos da alma)

Às vezes, eu ainda me surpreendo a pensar naqueles olhos tão dentro dos meus. Sinto que a minha mente desatou o no dessa lembrança… para me proteger de um algum tipo de horror. É possível que eu soubesse o que lhe acontecia.
Eu despertei do transe… ao ouvir a voz-severa-rude dela, ressoar no ar, vindo em minha direção:  “pare de me olhar assim ou eu furo seus olhos”. Ela não conseguiu me assustar, pelo contrário, me fez pensar em um camundongo, a correr ligeiro em busca de um canto, onde se esconder.

(fecha parêntese)

Tudo aconteceu numa segunda-feira comum, igual a todas as outras. Ao chegar à escola, ouvi os zumbidos das abelhas, no Pátio. O mural estava tomado por fotos da menina. Nudez exposta.  Humilhação imposta. O riso corria solta-ligeiro-faceiro. Não era possível identificar os meninos que “faziam mal” a ela, na foto. Mas dava para sabe-la refém de uma “brincadeira” cruel e covarde.

Levaram — uma vida inteira — para remover todas as trinta e seis fotos, do mural. O estrago estava feito. Todos os comentários, naquele dia, foram sobre a menina-nua-usada. Risadas ecoavam pelos corredores. Frases agudas. Ofensas e conversas de orelhas. Foi uma exposição cruel… que ela não conseguiu suportar. Nunca desconfiou que fosse o alvo de suas colegas de maldades.

Lembro-me de vê-la, acuada… posição fetal.
Dor-ódio — tudo misturado em seu corpo arqueado.
Quantos sentimentos contrários.

Algo na lembrança se move, emerge, está vivo… a notícia chegou pela voz do Diretor, que retirou os óculos e andou de um lado para o outro à frente do quadro negro, com seus passos curtos e a voz embargada. Parecia procurar pelas palavras certas. Ele sabia os autores por trás daquela humilhação. Sabia o nome da maestrina… e foi com os olhos atados ao dela, que nos avisou do desfecho. A morte do corpo — a alma havia partido. Olhei para a mesa-cadeira vaga, ao meu lado e guardei minhas coisas. Fomos dispensados. Nossos pais aguardavam por nós, para tentar explicar o que ninguém ainda tinha entendido.

O que me deixou inquieta foi a lenta caminhada solitária rumo ao morte.
Obter a lâmina e tomar a decisão definitiva.
Escolher o lugar, fazer o corte e aguardar pelo fim.

O tempo passou… uma semana sem aulas bastou para tudo voltar ao normal. Ninguém mais falou na menina e no que causou a sua morte. Ninguém mais falou…

E as meninas malvadas encontraram outra integrante para iludir e humilhar em seus jogos de horror. A cadeira, ao meu lado, continuou vazia… como se ninguém um dia a tivesse ocupado. Nem antes. Nem depois. Era apenas um lugar para onde olhar quando tudo ficava cheio.

b.e.d.a — blog every day august — um desafio que surgiu para agitar os dias
de abril e agosto nos blogues e comemorar o Blog Day

Alê Helga – Mariana Gouveia – Mãe Literatura 
Obdulio Nuñes Ortega – Vanessa

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

12 comentários em “* da voz das coisas

  1. Aplausos para esse texto incrível!
    Acho que todo aluno tem lembranças que gostaria de amassar e jogar fora.
    Na minha escola perturbaram muito a vida de um garoto que tinha problemas renais.

    1. Nossa, que história horrível, pior é saber que segue acontecendo e são poucos os que fazem alguma coisa. E ainda há quem ache que é parte do processo, algo como uma seleção natural. Que coisa mais horrível.

      bisous

  2. Hummm como comentar um texto tão cheio de lirismo e tão cheio de tristeza?
    O ambiente escolar é especialmente hostil e quando o ambiente em casa não é acolhedor, surge a receita para o desastre. Uma pena!
    Belo texto!

    Abraços!

  3. eu li esse texto no livro – que eu amo – e já comentamos sobre ele algumas vezes. É um soco no estômago e ao mesmo tempo uma sacudida na alma. Tenho algumas histórias assim.
    Bacio

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