Um grito a ecoar nas paredes do corpo-casa

Enquanto o molho salsa estava a cozinhar, pensava na minha escrita e nessa voz que surge quando os dedos se movimentam afoitos pelo teclado. Eu falo enquanto escrevo ou seria melhor dizer que resmungo palavras-frases para ouvir o que sinto-penso enquanto escrevo-transbordo?

Preciso ouvir-me… sabe?

A primeira vez que ouvi falar a respeito da voz do autor… foi durante as aulas de literatura contemporânea. A professora disse em voz alta, em seu palco particular: todo escritor tem uma voz única e a empatia que sente ao ler determinado autor diz muito sobre você

Eu não me entendi com esse processo… Fiquei à deriva, em alto mar. Não importava para onde eu olhasse, lá estava o azul céu-mar… Misturados em meu par de olhos.

Eu era apenas uma pequena leitora que escrevia notas em um caderno. Fazia redações escolares em parcas linhas, difíceis de serem respeitadas. Mas encontrei um caminho para a minha escrita ao saber o exato instante de ruptura, deixando um rastro — que a literatura chama de gancho — para a narrativa seguinte…

Todos os meus textos escritos nas aulas de redação formavam uma espécie de vagões conectados à locomotiva que eu era. E esse meu artifício não passou despercebido. A professora ao apresentar aos meus pais o meu arquivo, anunciou: falta apenas um título para o conto que a sua filha escreveu nas minhas aulas

Nada disso, no entanto, me ajudou a entender a tal voz do autor. Antes de escrever, eu pensava no que gostaria de narrar-contar e optava por personagens da minha realidade… Qualquer coisa que chegasse às portas da minha matéria: servia.

As mulheres da minha rua alimentavam-me com frequência. Eu observava as inúmeras histórias pitorescas do portão de nossa casa. Certa vez, duas mulheres se engalfinharam na calçada. Agarraram os cabelos uma da outra e os puxavam com toda a força. Trocaram unhadas, coices e xingamentos múltiplos.

Uma cena shakespeareana.

Dois homens tentaram separá-las e acabaram apanhando por se intrometerem e foram varridos de lá. O motivo da briga? Uma fofoca feita pela senhora que passava os dias em sua janela, tomando conta da vida alheia.

Eu a observei por alguns segundos, enquanto tudo acontecia. Ela parecia satisfeita com a confusão que havia provocado. Tenho certeza de que vi qualquer coisa de sorriso naqueles lábios opacos e murchos. Ao se ver detida em meu olhar, foi ágil em fechar as cortinas para rir em segredo.

As duas vizinhas que, antes eram amigas, não voltaram a se falar e proibiram os filhos de travarem qualquer tipo de contato. Mudaram os caminhos de seus passos apenas para não passar na frente da casa uma da outra… e os maridos optaram por obedecê-las, desfazendo a amizade. Certa vez, os vi sentados em mesas opostas na praça. Jogavam cartas com novos parceiros e trocavam olhares enviesados, forjados em ódio destilado.

Eu não cheguei a uma conclusão a respeito do que se passou…
Hoje, fosse escrever, o faria no melhor estilo Anais Nín.

Consciente de que cada escritor tem a sua voz… Decidi tentar identificá-las e para isso, recorri às minhas autoras favoritas. Gosto imenso da maneira como Jane Austen fala das mulheres de seu tempo. Não enxergo heroínas e vilões — como tantos leitores — em sua narrativa. O que percebo é a necessidade de mostrar-se enquanto mulher dentro de uma época… um elemento que nos une em tempo e espaço. Mas o que me agrada mesmo em Austen é o cuidado com o texto, a prosa elegante. Muitos afirmam que sua gramática era ruim; como se houvesse algum bom escritor que se preocupa com regras de pontuação ou qualquer outra, na hora de escrever. Sabe-se o mínimo e pronto. Não escrevemos gramáticas. Usamos o que sabemos, o que somos e não devemos esperar mais. Acho que todo escritor é anti-grámatica e estabelece linguagem própria para si e seus escritos.

Eu me deleitei com o que chamo de período laboratorial de Austen. Os muitos borrões, rasuras, confusões e a quebra de regras. E me deleito sempre que ouço ou leio alguém a desmerecendo — fosse homem seria um gênio — mas era apenas uma mulher que dependia de um bom Editor, como se houvesse no mundo um escritor que vivesse sem tal dependência.

Procurei por Virginia Woolf que me ofereceu o elemento de admirar as diferenças. Gosto imenso, como ressalta o sentimento incompatível com os valores de nosso tempo. Com ela, eu aprendi a não julgar os personagens — coisa nada fácil. Somos forjados para olhar e condenar. Não gostamos da roupa, do gesto, da fala. A lista de coisas que nos incomoda é longa e interminável. A maioria de nós… lida com caixas. Woolf desconstrói esses elementos todos. Em Orlando, me apaixonei pelo dualismo de sua personagem. A preferência pelo feminino e a percepção das exigências, que são muitas. Acho curioso que a personagem — após sua transição — conclui que as pessoas mais simples eram mais agradáveis que aquelas que admirava.

Mas está na narrativa de Lygia Fagundes Telles e Eliane Brum… um caminhar junto. A maneira como emprestam tudo de si aos personagens que se permitem ser. Não é silêncio o que encontro nas linhas dessas mulheres-escritoras, tampouco barulho. Funciona como se estivéssemos — as três — sentadas em uma mesa de um desses cafés que a cidade nos oferece, compartilhando histórias que são nossas e são de outros.

Quando escrevo, eu traço um diálogo sincero com minhas memórias — reais ou imaginárias. Às vezes, eu falo sozinha ou com a cadeira vaga a minha frente ou com um pássaro que surge do nada e pousa na varanda. Falo com as paredes ou com o autor que leio e escreve-se em linhas poderosas. Tenho essa necessidade de emergir dos meus silêncios profundos, demorados.

Desde a infância que me tranco dentro por necessitar ser a minha única companhia. Não quero o olhar do outro, a opinião. Quero apenas a minha voz… Sou uma romancista que inventa histórias, conta mentiras. Nada é real e nem tudo é inventado. Eu misturo mundos, pessoas, personagens. Não sou fiel a nada-ninguém, apenas a mim. 

Adquiri a consciência de que preciso ouvir a minha própria voz para identificar os ritmos da minha escrita faz algum tempo… porque o que está em meu texto precisa ser um eco das palavras que deixam a minha boca, quando experimento a construção de um bom parágrafo, que reúne verbos, substantivos, advérbios e adjetivos.

Eu sei, no entanto, que o rumo da prosa não é o mesmo quando estou em rodas. Essa outra fala se acomoda em pausas, poucas ou nenhuma pergunta e muitas respostas. Como em um jogo de damas, as peças se movem, pulam uma sobre as outras e pontuam jogadas decisivas ou não.

Prefiro a quietude porque não sou como Susan Sontag que tinha opinião a respeito de tudo.
Eu tenho algumas, mas estou cada vez menos disposta a jogá-las à mesa.
Percebi recentemente que discussões quebram o imaginário, limitam-nos a um bolha-caixa-lugar.

A minha escrita desliza pelo papel na terceira pessoa do singular porque é um narrar-se a partir de mim. Estou lá e sou o fio condutor do outro, que se apodera de minha anatomia. Ela não cessa. É uma espécie de eco que se espalha por todos os cantos do meu corpo-alma, se apropriando de cada filamento nervoso.

Escrevo por dentro primeiro e quando todas as paredes estão cheias de frases, transbordo de tão cheia. Acho que preciso experimentar tudo antes, provar dos ingredientes, aprender a misturá-los para só então preparar o prato, a mesa e servir. 

A minha voz é o eco de grito que resvala nas paredes do meu corpo-casa…

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

6 comentários em “Um grito a ecoar nas paredes do corpo-casa

  1. Foi o seu estilo de escrita que me conquistou. Você escreve como quem conversa com a gente, contando coisas suas. Gosto muito disso. Me lembra alguns de meus escritores favoritos. Muito bom. Eu adorava isso no Caio Fernando Abreu. Como era gostoso isso

    Bjinhos…:)

  2. Parabéns pela qualidade de teu blog e postagem.
    Há muito tempo pesquiso a respeito da voz do autor e nunca li algo que me fizesse compreender o que seria isso. Agora entendi que tem mais a ver com a personalidade de quem escreve, que deixa por assim dizer um rastro que nos permite identificar no dia a dia certos elementos. Show. Você deveria dar aula de escrita.

    Abraço

  3. Fiquei horas em silêncio, com seu post a ecoar em mim. Lembrei-me das vezes em que sua voz era guia em calçadas… Acho que vou ter que aprender esse grito.
    Bacio

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)

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