46 — Tenho uma almofada feita de “memories”

São Paulo, Alto da Lapa, fim de tarde… Ano 2012

Cara Suzana, escrevo-te a bordo de uma tarde de sol e ao olhar para o céu, por entre os galhos da jabuticabeira e os telhados vermelhos das casas que me cercam… percebo pequenos chumaços de algodão passeando ao gosto do vento. Alguns chamam de nuvens e outros de cirros-cúmulos.

Fecho os olhos e respiro fundo. Um halo se estabelece entre o ontem e o hoje… no mar que chega aos seus olhos em ondas e no que chegava até os meus — na infância. Como eu gostava de observar o impacto das águas oceânicas contra as pedras… explodiram em milhares de partículas. Era um belo espetáculo… que dependia da lua, da estação do ano, da marés e das correntes marítimas.

Li sua missiva de novo, antes de vir aqui me sentar… estou me despedindo desse cenário onde trocamos abraços, sorrisos e planejamos nossos livros. Parece que foi ontem… mas foi há mais tempo. Eu não sou boa com esse tipo de soma.

Se fechar os olhos de novo, ouço a campainha e a sua voz na porta de entrada. Eu estava na cozinha preparando um chá das cinco para todos nós. Você trouxe uma convidada-surpresa e enganos uma prosa na mesa da cozinha. Era como se nos conhecêssemos há anos. Trocar correspondência tem esse efeito em mim. Quando me deparo com a pessoa a quem escrevo, é como se tivesse saltado a primeira vez.

Eu gosto de saber que minhas palavras vão de encontro ao seus olhos — faz surgir uma espécie de alegria natural em meu íntimo. O discurso parece pronto e a narrativa é algo leve – sem a densidade de coisas reais. Não há peso – existe apenas o prazer de palavras deixadas aqui, sem a certeza da resposta porque, às vezes, me antecipo ao que irá dizer, como se fosse um papo de palavras cifradas numa mesa imaginária. Nós duas e nossas xícaras e nossos livros de poesias.

A paisagem está calma… parece saber que falta pouco para esse lugar se esvaziar de nós dois. Algumas coisas foram embora ontem. Outras irão na semana seguinte. Vamos mudar de bairro e você sabe, em São Paulo, é como mudar de país.

Eu vivi na área central por alguns anos… fechamos a porta de uma casinha geminada, estilo napolitano e pronto — migramos como os pássaros. Não havia muito o que levar. Duas ou três caixas de coisas e pronto… Não escolhemos o lugar seguinte, fomos escolhidos por ele. Também não acumulei muito. Um pouco de papéis. Mas era uma casa pronta, que pertencia a uma família que foi se esfarelando com o passar dos anos. Os filhos foram os primeiros a partir. É natural… mas depois foi o patriarca da família e por último, foi a vez da matriarca, que selou o destino do lugar — vendido para que a partilha fosse feita entre os herdeiros.

Vou sentir falta dessa paisagem em algum momento. Da vista da rua pouco movimentada e até do apito sem graça do rapaz sonâmbula em sua bicicleta, que recebe para proteger casas e pessoas. Mas não faz nem uma coisa, nem outra…

Foram dias felizes aqui… fizemos festas, jantares. Recebemos amigos e eu comecei a me entender com a pessoa que pretendo ser enquanto caminhava pelos espaços dessa casa. Vou guardar nossos diálogos regados a chá e uma fatia generosa de bolo recém saído do forno. Os nossos sorrisos, a quietude de nossos gestos, o passeio lento e silencioso até a praça em que nos abaixamos ao mesmo tempo para colher uma folha. Eu ainda tenho aquela folhinha… está guardada dentro do livro de Cecília, na página em que o poema lua adversa se oferece aos meus olhos.

Às vezes, enquanto escrevo pra ti, silêncio meus dedos e danço pela paisagem. Revisito tudo isso… e volto a essas linhas, como se a vida fizesse pausas necessárias — e sabemos que é assim — para depois voltar ao seu curso natural, puxando um pouco mais de ar, de vida, de tudo e nada.

Despeço-me… e sei que essa é a última missiva que escrevo daqui desse fundo de quintal. O meu olhar se perde entre as nuvens, em busca de desenhos que não encontra. Há promessa de chuva para essa tarde. Seria perfeito para quem nasceu entre um trovão e outro. Vejamos o que irá acontecer…

Bacio

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana... degustadora de café. Figura canina e uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Paciência é algo que me falta desde a infância. Mas sobra sarcasmos para todas as coisas da vida que fazem mais barulhos que cigarras nos troncos das árvores. Aprecio o silêncio e falas cheias, escreve-se em prosa por apreciar a escrita em linha reta. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

3 comentários em “46 — Tenho uma almofada feita de “memories”

  1. Estou aqui a olhar a paisagem que se desenha lá fora e mergulhada no panorama das nossas memórias. As letras desenham milhares de saudades em diálogos de chá e livros.

    Ah, que carta linda!

    Fico aqui a suspirar cada letra. Desvendando cenários conhecidos e alguns que, tal qual retrato sépia, enfeita a estante na esperança de não esquecer nenhum detalhe do dia que aquela foto foi clicada. Gosto dessas memórias que carregam aromas, sabores e notas.

    Tua missiva é um adorno para o meu dia!

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto: