47 — Entre o dia e a noite, há sempre uma pausa quebradiça

missiva escrita em julho de 2002

Caro mio,

Há pouco vi o sol se pôr… e fiz uma pausa nas coisas todas para apreciar a paisagem urbana que você não conheceu. Talvez por ser Julho — o nosso verão — a sua presença esteja mais forte nesses dias estranhos. Ouço a sua música e enquanto canto o refrão, é como se combinasse as nossas vozes.

Há pouco, me lembrei daquela tarde tristonha de julho em que não tínhamos mais nada para fazer… a paisagem estava aborrecida e esperávamos pelo canto do carrilhão, que havia se calado no ano anterior. O lugar estava deserto do homem que nos unia ao seu redor e não sabíamos o que fazíamos naquele lugar que parecia se liquefazer a nossa passagem.

Era o primeiro ano sem o nonno e as discussões se avolumavam. E o que era ruim-difícil ficou pior com as disputas por cada objeto deixado entre alguns dos irmãos e você lamentou pesado o seu pai fazer parte de tudo aquilo. Mas não estava surpreso — ele era um ganancioso asqueroso e você não se cansava de repetir: não é possível que eu seja fruto disso…

M., saltou do sofá e disse: tive uma idéia: vamos para o Marrocos! — e eu que só queria ir embora daquela casa-lugar, não hesitei. Ao contrário de você, que queria ficar, se despedir. Você sentia que não voltaria mais ali e havia uma parte de você que ainda não tinha dito adeus. Mas acabou concordando porque o ambiente estava impossível para nós.

Eu estava tão certa do que queria… do pôr do sol. Eu acreditava que era diferente no Marrocos e você ria disso como se fosse apenas uma bobagem minha. E eu bufava diante do seu olhar de adulto direcionado a uma menina ingênua. Você era tão contraditório, incapaz de saber a si mesmo, que dirá o pôr do sol em outro país.

E lá fomos nós! Não foi a nossa última viagem. Mas eu gostei imenso quando você me abraçou e cochichou apenas para que eu ouvisse sua voz-confissão: você estava certa, é lindo e não existe outro igual. Mas não foi o melhor, nem o pior. Há pouco, quando o sol começou a tombar pela paisagem e eu vi o alaranjado atingir os prédios, a sensação foi única.

São Paulo, meu caro, tem qualquer coisa que me intriga desde aquele dia no Viaduto do chá, quando uma tempestade me deu as boas vindas. As pessoas por aqui não são diferentes de outros lugares. Não são mais ou menos. São apenas o que são: umas pequenas, outras enormes. Todas, no entanto, são solitárias. Isso é próprio do ser humano, que foge do que é apenas para não admitir o medo.

Eu sempre soube que sou sozinha do lado de dentro e nunca tive medo. Gosto imenso disso. Fecho os olhos e me aconchego. Sinto-me em queda, como Alice… a cair, a cair, cair. Totalmente consciente que existia em constante queda, nunca chão, nunca fim. Haverá um momento no entanto em que não mais cairei e então… a reticências serão removidas. Falamos nisso, certa vez, mas aquela menina que lhe falava enquanto apreciava o sol tombar atrás daquelas montanhas tão verdes não se parecia em nada comigo. Aquela não era eu — era outra. Alguém que tombou como o sol…

Mas eu sei dizer que está aqui que vos escreve no findar de mais uma tarde de julho, revira as velharias que guarda da memória nas manhãs de sábado e se sente feliz e grata por tê-lo conhecido. Eu queria mais tempo na sua companhia. Outras tardes-viagens-momentos. Eu inventei algumas coisas, às vezes, te levo comigo e cantamos juntos pelos caminhos que atravessamos com o corpo, a mente, os braços e alma enroscados: “Now I know my place is home – Where the ocean meets the sky – I’ll be sailin‘”.

Hoje eu revisitei nós dois naquela praia… e bebi em pequenos goles a sensação de que o mundo é apenas um contorno colorido feito por aqueles lápis guardados em caixas, usados para riscar o branco do papel, com formas estranhas que eram casas-pessoas-e-paisagens.

Oh, meu caro… eu sei que essa é vida é tudo que temos e não há amanhã depois disso. Mas seria maravilhoso um depois, apenas para rever-te. Te amo pela ilusão de uma eternidade inteira!

bacio en tuo cuore
Tua minore

2 respostas para ‘47 — Entre o dia e a noite, há sempre uma pausa quebradiça

  1. Lua Nova

    Uau, que missiva linda e que bom que a resgatou da gaveta.
    Eu não conheço o por do sol do Marrocos, mas achei delicioso isso de dizer “vamos para o Marrocos” e pronto. Eu não sei se gostaria de ir até lá. Talvez eu fosse para uma praia no fim do mundo. Deve existir uma. Então eu diria assim: vamos para uma praia no fim do mundo? E todo mundo concordaria.
    Vocês deveriam ser uma turminha bem incrível. Eu me lembro de ler que vocês mochilaram durante semanas pela Europa. Sei que isso é bem comum por lá. Por aqui, e perigoso. Acho até que é impensável.

    bisous

  2. Mariana Gouveia

    Eu não resisti e corri para ouvir a canção e desejei muito ir para Marrocos contigo. Vi uma série onde viajei por cores e aromas. Se não for com você, juro que nunca irei para Marrocos e torço muito para um depois nos ligue nos mapas futuros. Quero muito ter outra vida e encontrar contigo novamente.
    Amo tu!

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)