Mariana,
A manhã vai longe… e a galope! É quase hora do almoço do lado de fora dessa janela aberta que sou e não pensei nos ingredientes para esse domingo de sol-frio. Talvez porque ainda não amanheceu em meus olhos. Eu sou assim, cara mia. Vivo à deriva das horas, dos dias-semanas-meses. Eu me demoro um pouco mais a bordo dos ontens que coleciono e me dedicar a escrita agravou mais esses sintomas que coleciono. Sou uma pessoa em estado febril constante. A temperatura do meu corpo varia ao longo do dia…
Nas manhãs eu sou mais lenta… o meu passo demora pelos cômodos da casa, pelas calçadas do bairro e o meu olhar nem sempre alcança a paisagem. Respiro fundo, atravesso a rua, com as mãos dentro do bolso da calça. Sem pressa, desejando ficar no passo anterior… deixo passar essa gente apressada — uma manada humana — me ultrapassar porque não tenho pressa…
À noite… sou outra. Precipito-me em movimentos insanos. Vou de um canto do mundo ao outro num estalar de dedos. Percebo lugares, pessoas. Antecipo-me ao outro que passa por mim… personagem da vida real, esse grandioso palco onde tudo se encena.
Descobri minha cara, que eu posso me comparar a uma xícara de chá. Não sei se você sabe, mas para se fazer um chá há todo um ritual, introduzido no mundo pelos orientais. É preciso fazer uma pequena pausa no dia. Abrir uma brecha na vida {realidade das coisas e suas causas}, no tempo e no espaço.
Eu gosto de apreciar tudo… a chama azul do gás, a água sendo despejada dentro da chaleira e aquele precioso tempo de espera até ouvir o apito provocado pela ferver a da água. Enquanto isso, vou até a prateleira e resgato um livro de poesias através do tato, sem saber título ou autor. Livro aberto, poesia lida: escolho a xícara. Gosto de uma preta com desenho de elefante, esse gentil animal que tive o prazer de observar durante uma viagem à África. Foi insano ouvir o canto daqueles animais. Ainda hoje sinto o meu corpo trepidar e o cuore falhar ao pulsar e os olhos ficam cheios. Foi uma lição de vida, minha cara. Mas, às vezes, escolho outra.
Separo as ervas — hoje eu escolhi o hortelã, pau de canela e lascas de gengibre. Gosto da sensação gostosa de macerá-las, fazendo emergir no ar o aroma de uma vida inteira.
Você sabe quantas coisas cabem dentro de uma simples xícara de chá? É nisso que penso toda vez que deito a água fervente na xícara. Gosto imenso do som oco e da fumaça que sobe nos ares. E vamos ao tempo de espera mais uma vez para acontecer a infusão. Quando escrevo pequenas notas-mentais-futuras, começo uma missiva (como está) ou apenas escrevo no ar um punhado de emoções sinceras.
Hoje me ocorreu um questionamento novo: quanta espera realizamos durante um dia inteiro? Eu tenho necessidade de fazer pausas. O meu corpo pede e eu obedeço. Eu me lembro que na infância, o olhar travava em nada e tudo parava. Eu não me mexia, não respirava: inexistia. às vezes, ainda acontece, mas está cada vez mais raro. Mas, no meio da tarde, sinto vontade de bebericar uma xícara de chá ou de preparar uma receita de pão e eu sei que o efeito é o mesmo. São pausas necessárias, uma espécie de freio natural porque temos essa mania — estranha — de acelerar tudo. E mesmo assim, nos falta tempo…
Será que é o contemporâneo que nos demanda coisas demais ou somos nós mesmos? Quando criança, tudo era tão lento. As horas em sala de aula eram intermináveis. De um minuto ao outro levava uma vida inteira. As férias de verão na casa do nonno durante o tempo exato de um verão. As voltas dos ponteiros ocupavam-se de cada um de seus segundos… e eu me lembrava da hora cheia — que tornou-se a minha favorita — porque o carrilhão as cantava eufóricamente. Dentro da noite, eram mais sonoras e perversas. Eu dava pulos na cama, na primeira noite…
Hoje, no entanto, tudo se dissolve. Faz pouco que acordei para essa manhã de domingo e os ponteiros apressados, cospem suas doze horas… ou quase! Foi ontem que Catarina voltou a escrever e cá estou eu a inaugurar o primeiro dia de uma década.
Os minutos se atropelam. Tudo é para ontem e o hoje é essa sinuca sem tacos ou bolas nas caçapas! Para onde será que vamos? Me parece tão impossível traçar um destino nessa velocidade… Acho que é por isso que a minha escrita — que estranhamente avança para o futuro enquanto linhas azuis traçadas no papel — escapam para o ontem, esse meu pretérito (im) perfeito…
Bem, preciso de outra xícara de chá e da pausa que ela me oferece…
Acompanha-me?
Quando recebi sua missiva pela manhã, fiquei em suspiros… Decidi responder em forma de outra missiva e você já tem o caminho.
Vibro os 10 anos de Catarina contigo e é o meu lugar preferido – você sabe. E claro, brindemos com chá… Tim tim!
Bacio
Tomei o chá feito pela Mariana e depois o seu. Cronologicamente, o seu foi feito antes, mas assim como no enigma da causa e efeito, os dois textos se imbricam para se tornarem um só. Saborosíssimo!