08  | a leitura que faço de mim mesma

Eu gosto de ir na contramão do passo — alheio… pelo meio e mais devagar, com as mãos dentro do bolso da calça. Enquanto caminho, combino os meus passos com os meus pensamentos e vou saboreando tudo que chega às fronteiras do meu corpo.

Aprendo o outro que passa… com pressa — a esbravejar contra a própria sombra. Figuras insólitas em estado latente de fobia-insanidade. Marcham por uma realidade bucólica sem dar por absolutamente nada; imersas em fúrias, não desconfiam do quão preciosas são.

Passam por mim e deixam pequenas partículas — peças de um quebra-cabeça que eu me dedico a montar ao ocupar esse meu lugar sagrado… diante da tela, onde construo ilusões a partir da realidade cotidiana…

Sou apaixonada por essas figuras fantásticas… tanto quanto um desenhista por sua folha em branco e que de posse de um carvão tece seus riscos-rasgos no Canson. Eu faço o mesmo. Mas o material é outro…

De posse das anatomias que devoro, cruzo a fronteira da realidade e mergulho nesse mundo onde tudo se dissolve e se transforma através do cinza-toque-grafite-no-papel. Curiosamente, também é cinza a cor das letras que, em um punhado de toques, se precipitam na tela.

Quando caminho calçadas… crio um mundo fantástico. Me conecto à realidade pelo avesso. Observo formas, fôrmas, figuras humanas ou não e superfícies de todos os tipos. Rubem Alves escreveu em uma de suas crônicas e eu guardei para uso-futuro: os olhos dos poetas são diferentes, por isso, eles vêem coisas ao revés e conclui dizendo que “poesia são coisas vistas ao contrário

Eu não sou poeta, mas na qualidade de leitora de poesias, gosto imenso de percorrer lugares atrás desse olhar diferente.

Levo vários poetas no bolso! Vez ou outra, um verso salta dos lugares por onde passo e a emoção ocupa espaços do corpo-pele, pelo tempo de uma caminhada. Volto satisfeita para casa, com a memória bem cheia e o imaginário renovado. Sentar-me para escrever é como saborear um pesado gole de café ristretto.

A maioria dos meus textos surgem entre um humano e outro… uma esquina e outra… um passo e outro… Eu demorei para compreender esse meu ritmo. Lembro-me que quando um texto enroscava em suas consoantes e vogais, eu respirava fundo e saía para andar. E conforme o passo avançava — na mesma direção do grafite no papel — eu escrevia no ar.

E durante muito tempo, pensava ter perdido muitos textos no percurso entre a casa e a praça. Até compreender que nada se perde, de fato. No momento em que aqui me sento, tudo transborda. É um processo natural. Uma espécie de pacto firmado entre o meu corpo-pele-memória e os meus dedos.

No começo, eu tinha pressa — a mesma que vejo nos passos alheios hoje. Corria atrás de um pedaço de papel. Mas não havia tempo. Estava sempre atrasada para a frase perfeita. Eu tive um ataque de risos no dia em que percebi que o texto-perdido que eu pensava perdido pela manhã, havia sido encontrado no final da tarde.

Para comemorar tal descoberta, chamei o cão para um passeio e fomos os dois pelas calçadas do bairro, com os passos bem encaixados, esbarrando em humanos apressados — inconscientes das alegrias que o meu aspergia pelo ar.

Hoje, o meu passo-corpo vira uma esquina e os olhos esbarram num personagem qualquer, que para aquele momento pode não ter utilidade. Mas eu sei que terá num futuro-outro-qualquer, quando o elemento essencial-necessário for solicitado. Atravesso a rua — com o som nas orelhas a gritar um rock ou um velho blues — e a maneira como a luz resvala na silhueta de um prédio me atrai. Um universo de possibilidades acontece: um cenário-futuro de vivências a serem narradas por mim em linha reta. Abaixo para afagar um dog, ganho lambidas e desejo um bom passeio e há qualquer coisa nessa cena que fica para depois. Avanço com o passo e no meio do caminho, colho o resto de um diálogo — falas vazias, que eu escolho guardar para mais tarde, quando poderá (ou não) se encaixar na voz sonora de algum personagem ou servir para justificar outras frases-minhas…

Como escreveu Sylvia Plath em seus diários —  somos todos personagens de nós mesmos.

Agosto [entre tantas coisas] é o mês do B.E.B.A
e eu terei companhia nessa aventura diária:
Mariana Gouveia – Obdúlio Nunes Ortega – Suzana Martins
Darlene Regina – Mãe Literatura – Alê Helga – Roseli Pedroso

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana... degustadora de café. Figura canina e uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Paciência é algo que me falta desde a infância. Mas sobra sarcasmos para todas as coisas da vida que fazem mais barulhos que cigarras nos troncos das árvores. Aprecio o silêncio e falas cheias, escreve-se em prosa por apreciar a escrita em linha reta. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

15 comentários em “08  | a leitura que faço de mim mesma

  1. Que post mais incrível e cheio de reflexões. Gosto de coisas assim, que nos fazem olhar para nós de uma jeito diferente… Esse trecho em que você fala de criaturas fictícias foi o que mais gostei, pois volta e meia me pego atormentada por personagens de mim mesmo, pessoas que eu gostaria e deveria ser mais de vez em quando. É uma reflexão interessante de se fazer, ainda mais quando se escreve e tem muita imaginação ❤

  2. Os humanos e seus hábitos em coletivo sempre criam uma boa estória em terrenos férteis na cidade cérebro e o ambiente em volta torna cada estória dessa mais mágica, romântica ou sombria – depende de qual região da cidade se está.

    Somos (quase) todos personagens em metamorfose.

    Beijos,
    Maryanne Simplício
    Blog Revelador

  3. Adorei o seu texto! Me vi em vários trechos dele inclusive rs
    A propósito essa parte “Gosto de provar dos aromas-cores-superfícies e tudo o que a cidade oferece. A poesia do espaço urbano é infinita e reverbera em mim a todo o momento.” parecia me descrever rs
    Parabéns por colocar tanto sentimento assim nas palavras!!!

  4. Muito boa a leitura que faz de si mesma, nos faz refletir muito e agora nesse momento estou repensando que personagem sou eu…

  5. Concordo com você as pessoas andam muito apressadas atropelam-se umas às outras…as pessoas andam de cabeça baixa,olhando seus celulares a interação olho no olho,ser cordial a cada dia é mais escasso e isso é horrível
    Muito boa sua reflexão de si mesma bjs

  6. Oiiie!

    Adorei seu texto (não é novidade, né?). Eu também ando meio “desligada”. Pareço que estou aqui, mas estou em outros lugares. Minha mente viaja nos mundos que crio, nas tramas que me entretêm e me salvam em meio à correria que é nosso dia a dia.

    Beijos!

  7. Acho interessante essa percepção que você tem a respeito de tudo o que está ao seu redor, seja as pessoas que cruzam seu caminho ou o ambiente que faz parte do seu cotidiano, tudo acaba se tornando uma trama e todos acabam se tornando personagens. Isso está muito relacionado com a observação e imaginação, as pessoas costumam estar apressadas e não prestam atenção no que está pelo caminho, e estar atento a cada personagem é algo para poucos.

  8. Adorei o texto , na verdade gostei de vários. Adorei a maneira que escreve, mesclando fatos com metáforas. Faz com que seu efeito seja profundo e remete a reflexão. Parabéns, uma boa leitura sempre é bem vinda 🙂

  9. Eu costumo “perder” temas para os meus textos. Tenho tentado anotá-los assim que surgem, mas por vezes fogem de mim como quisessem ser capturados. O mais certo que são saraivadas de estímulos que me atormentam a “ideia”.

  10. Esse seu texto me trouxe na memória tantas coisas… foi como se estivesse ao seu lado. Já estivemos juntas em algumas esquinas. Seu texto me levou até a ti. Grazie!

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)

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