Conto Sete Pecados  | A inveja nossa de cada dia…

Ela corria — em fuga — pelas ruas com a cabeça coberta por uma revista. Os passos imersos em pressa saltavam por cima das poças que se multiplicavam pelas calçadas encharcadas da cidade. Mantinha certa distância da rua para evitar o banho gelado da água que os carros jogavam para cima da calçada.

Estaria a casa naquela hora… não fosse a solidão que lhe atormentava. Era algo crescente em seus dias e que dobrava de tamanho de maneira repentina — incomodando-a. Os cômodos vazios, a mesa posta apenas para si e o som das conversas em pares nos outros apartamentos. Nos últimos dias, havia começado a se sentir como uma mobília velha, encostada num canto, coberta de poeira.

Ela queria aquecer o corpo, a pele e a alma em algum canto da cidade. Ouvir conversas alheias, fingir participar de uma realidade plural e beber uma xícara bem merecida de capuccino bem feito.

Estava cansada de jogar xadrez com a própria sombra.

Passou pela porta do elegante café na Augusta e empacou o passo. Varreu todo o lugar em busca de uma mesa. Estavam todas ocupadas por pessoas em pares a sorrir a alegria da companhia do outro. Sentiu-se convertida em tela de Hopper. Era a única figura sem par… a única dama num baralho inteiro, cheiro de naipes aparceirados.  

Respirou fundo e tentou não se encolher diante da sua realidade. Fez o pedido — com todos os detalhes de quem conhece café — no balcão — lugar dos solitários  — e aguardou… em pé até que o seu nome fosse pronunciado em voz alta pelo barista — enquanto observava as cenas de filme.

Uma sessão da tarde se repetia em cada uma daquelas mesas. 

Encantou-se com uma figura que teve seu nome mencionado pelo barista. Nome elegante, com todas as consoantes no seu devido lugar e uma única vogal a se repetir entre elas. Que perfeição! Sorriu ao reparar que se tratava de um belo cavalheiro. Bem vestido, barba aparada, um perfume gostoso e moderado. E a bebida? Ao ouvir o som daquela palavra que caiu da boca do barista como se estivesse quente demais… quase desafaleceu. Ele havia pedido um des.ca.feí.na.do.

Respirou fundo e lamentou, juntou as mãos e fez uma prece qualquer. Alguns versos apenas. Não se lembrava de tudo. pai nosso, que está… Ah, eu sei lá onde você está. Que coisa mais horrível. Que gosto terrível. Que homem mais tenebroso.

Ele foi gentil — pediu licença ao passar — e levou sua bebida sem graça para bem longe dali… até a mesa que dividia com um amigo… que lhe sorriu  com os olhos, a boca, a ponta dos dedos, as mãos… deixando transparecer às sete e trinta e cinco daquela noite, todo a abrangente, enriquecedora, desafiante, imortal, irresistível alegria de se saber um misterioso labirinto a ser percorrido.

Ela só conseguia pensar na maldita bebida: — Descafeinado?  — repetiu a palavra mais desagradável do seu vocabulário, sentindo um não-gosto na boca.

E o seu nome foi dito em voz alta finalmente… nomeando-a figura solitária que era. E em seguida foi a vez de sua bebida, servida em uma bela xícara branca de louça: um cappuccino tradicional, a maneira italiana, bem feito e na temperatura exata. Sorveu primeiro o aroma. A melhor das sensações. E por fim, levou à boca para um pequeno gole. Aprovado, ela agradeceu ao barista. Teria a melhor das companhias pelos próximos minutos. Depois do último gole, voltaria para casa.

Antes disso… outro nome a atraiu. Uma figura as escuras, enlutada. Nome curto, rápido — um shot. Duas vogais e duas consoantes. Observou atentamente os gestos da Mulher, tão miúda quanto o nome. O medalhão vermelho que levava no peito — um cuore de rubi — parecia ter o dobro de seu tamanho. Era a única herança deixada pela avó e o exibia com satisfação, sabendo-o falso. O original foi vendido para pagar as contas deixadas pelo defunto, o avô amaldiçoado por gerações.

Talvez pudessem ser amigas, considerou. Mas ao ouvir do barista os detalhes da bebida, murchou. Respirou fundo e decidiu ir embora antes que se esvaísse num suspiro de autopiedade. 

Ninguém ali sabia pedir um simples café!

Agosto [entre tantas coisas] é o mês do B.E.B.A
e eu terei companhia nessa aventura diária:
Mariana Gouveia – Obdúlio Nunes Ortega – Suzana Martins
Darlene Regina – Mãe Literatura – Alê Helga – Roseli Pedroso

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

11 comentários em “Conto Sete Pecados  | A inveja nossa de cada dia…

  1. Ah, os sete pecados de Lunna. Eu tenho o livro que você publicou com outras autoras, Lu. Vou até resgatá-lo (como você) do meu baú para ler.

    Adorei! Beijos.

  2. hahahahaha, adorei o conto e os detalhes.
    O nome com consoantes e apenas uma vogal que se repete.
    Achei o máximo. E depois o nome curto, um shot.
    Claro que eu fiquei tentando imaginar quais eram os benditos nomes.
    Que droga.
    Mas o desfecho foi sensacional: ninguém sabe pedir café.
    Vou levar o meu cappuccino embora daqui.
    hahahahahahaha

    Adorei
    Bisous

  3. Oi Lu, gostei muito do conto, mas não entendi a idéia do título e nem o pecado da inveja em si.
    Mas o conto em si é sensacional. Gostei mesmo. Mas acho que teria que ter outro título e outro pecado, viu?

  4. Eu acho que me daria muito bem com a sua personagem e como eu sei que você observa a realidade, me diz em que café encontro essa pessoa. Por favor, vai. Eu nunca te pedi nada. hehehehehe

  5. Eu ri gostoso do desfecho desse conto e vou discordar de quem disse que o título não faz sentido. Para mim fez. E fez muito. Com todos esses detalhes. A solidão da personagem, espiando as pessoas acompanhadas e ela toda cheia de exigência com cafés e nomes. Inveja de coisas mais simples, fáceis. Ela se sente sozinha no mundo, a única com bom gosto.

    Beijos pintados, Lunna.

  6. Eu me vi dentro do seu conto. Me vi dentro do café que você me levou anos atrás – e curiosamente, no meu pedido, foi seu nome que foi pronunciado.
    Um dia, vamos corrigir isso. Já reparou que temos tantas coisas para corrigir?
    |Seria vaidade minha?|
    Rá!

  7. Que delícia de conto, minha querida Lunna.
    Voltei a ler-te nesse agosto porque gosto de acompanhar as blogagens nesse tempo de férias por aqui. E me lembro da época em que publicava contos no menina no sótão.
    E esse ficou divertidissimo.

    baci

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