Conto Sete Pecados  | com pasta fere, com pasta será ferido…

Giovana vivia sozinha em seu Studio, no centro de São Paulo. Figura discreta e disponível para ajudar os moradores do prédio que brotava no chão com seus oito andares voltados para o viaduto Major Quedinho, perto da famosa lanchonete do Estadão e a meia dúzia da simpática Avenida São Luiz, por onde adorava passear.

Muito querida por todos, vivia para os estudos e o trabalho de meio período numa pequena e simpática livraria. Conhecia os clientes pelas preferências literárias. Espirituosa, ria das piadas que ouvia e fazia rir com o seu sarcasmo bem calibrado.

Mas era reservada. Apenas os mais próximos — os vizinhos do edificio revisto por hera — sabiam da sua comovente história. Filha única. Ficou órfã aos treze anos e era comparada por um dos moradores — conhecido por seus hábitos de leitor — com o personagem de Marcos Rey, autor do romance juvenil: “sozinha no mundo”.

Giovana colecionava amigos, alguns admiradores e os moradores do prédio cuidavam dela, desde a morte da mãe… retribuindo toda a dedicação da menina. E viam com bons olhos a paixonite dela por Luiz Júnior — um jovem rockeiro que nas primeiras visitas, foi visto com desconfiança. Mas ao perceberem que era o único a fazer brilhar os olhos de Giovana, passaram a tratá-lo melhor.

A jovem estudante de Letras passou a frequentar os ensaios da banda. Torcia pelo sucesso do grupo e todos concordavam que o guitarrista e vocalista… vivia a melhor das fases. As letras nunca foram tão boas. Tinham certeza de que a garota era a razão.

E veio o primeiro show oficial, com folder e convites em uma badalada casa noturna da cidade. E para comemorar o sucesso, Luis Junior resolveu fazer um convite à amada. Pretendia levá-la para um encontro. Mas desistiu por não saber onde levá-la. Optou — após conversar com o irmão mais velho — por um programa familiar. Levou a moça para um almoço de domingo, na casa dos pais. A mãe prepararia a sua famosa macarronada e passariam uma tarde agradável juntos.

Ao chegar, a moça caiu nas graças do pai que elogiou a beleza e a simpatia da jovem… E dos irmãos, que a chamaram de cunhada no primeiro contato. A mãe, no entanto, a mediu de cima a baixo — e a reprovou. Era magra demais. Inteligente demais. Ria demais. Quieta demais… tudo era demais naquela garota.

Maria das Graças tratou de apresentar as suas credenciais de Mãe, apontando tudo que sabia a respeito do filho, deixando claro que cuidava muito bem de sua cria. Ela conhecia o seu caçula como ninguém e não seria qualquer uma que estaria a altura dele.

Luis Júnior — que na voz da mãe arecia um nome só: luisjunior — assustou-se com a atitude inesperada de dona Maria das Graças e se encolheu de vergonha. Os irmãos tentaram interferir. Mas a mãe estava decidida a fazer naufragar um possível relacionamento entre os dois.

O almoço foi constrangedor. A mulher exibia-se e não deixava ninguém mais falar… Mostrou todos os seus apetrechos culinários, comprados na Itália. Relatou detalhamente como preparou o molho — da compra dos tomates na feira do bairro ao processo para retirar a pele e fazer o tal de molho al sugo — dito com sotaque de alguma região italiana, fazendo a moça rir.

— Eu disse alguma coisa engraçada? — rugiu.
— Eu apenas me lembrei do meu vizinho que é italiano e sempre se diverte com as bobagens que nós brasileiros dizemos e culpa a novela terra nostra por isso…
— E qual foi a bobagem que eu disse? Posso saber?
— A senhora disse: “molho ao sugo”. Mas é um termo equivocado, segundo o signore Vitorino. O certo é molho pomodoro porque sugo significa molho, em italiano. Sendo assim, a senhora servivia um molho ao molho.

A mulher espumou por dentro e odiou ainda mais a criaturinha enviada por algum demônio desocupado, diretamente dos quintos dos infernos para atormêntá-la e seduzir o seu pobre menino ingênuo. Mas ela estava ali para salvá-lo…

E, ao trazer a travessa de macarrão à mesa, inventou de dizer que tudo ali era obra sua: até a massa do macarrão.

— Ao menos as uvas não foram a senhora quem colheu. Ou foi?

A família inteira reagiu ao sarcasmo da convidada, que não se deixou intimidar pela dona Maria das Graças, que foi feriada com os risos do marido e filhos. A mulher fuzilou Giovana com os olhos.

A Guerra estava declarada.

Com tanto ódio destilado, não era de se espantar que algo saísse errado. E a pasta pagou o pato. Estava seca, sem gosto e muito mole. Mas ninguém ousou reclamar, nem mesmo Giovana que engoliu garfadas da pasta insossa, devidamente regadas a pesados goles de vinho… e pronto.

Ninguém quis repetir.
Estavam mais que satisfeitos ou quase bêbados.

Ao se despedir, Giovana partiu para o ataque. Agradeceu a receptividade e fez o convite. Disse com um sorisso enrome nos lábios que seria um prazer servir um jantar em sua casa. Avisou que era um lugar pequeno, mas muito acolhedor. Um dos prédios mais simpáticos do velho bairro do Bixiga. A vizinhança era agradável e ressaltou que não era tão boa cozinheira quanto a mãe de luisjunior. Mas que havia aprendido algumas coisinhas com a mãe.

Não se declara guerra a uma pessoa de paz.

Giovanna comprou tomates graúdos na feira — o dono da banca separou os mais vermelhos para ela. Uma cabeça de alho com dentes vermelhos e graúdos. Um excelente maço de salsa e algumas cebolas roxas. Giovanna faria o seu melhor molho salsa. Seu Américo do segundo andar, preparou a sua tradicional fornada de pães. Dona Gertrudes do primeiro, cedeu uma travessa de prata. A mesa veio do terceiro andar, com as cadeiras. A toalha do quarto.

Todos esperaram ansiosos para ver de perto a mãe do rapaz, que foi recebida com toda a educação. Mas, se olhar matasse, a mulher não chegaria viva ao apartamento de Giovanna.

Surpresa por encontrar o apartamento bem arrumado, com as coisas todas no lugar… engoliu uma a uma as qualidades da moça e tratou de desfilar os defeitos: “como é pequeno, pouco iluminado, quase não tem mobília“. Tudo a incomodava… estava no lugar errado ou não combinava.

Vinho tinto servido em taça de cristal. Maria das Graças reclamou que o marido precisou usar um truque — que divertiu a todos — para sacar a rolha. E os petiscos em travessas de bronze que precisavam ser polidos.

— Foram os meus amigos aqui do prédio que me emprestaram tudo quando contei que iria recebê-los. Fizeram questão quando souberam quem era a senhora.
Curiosa e preocupada… quis saber o que havia dito a eles.
— Apenas a verdade querida — ironizou –, que a senhora era a mãe do Luiz Júnior.

E para fechar a noite, Giovanna serviu a pasta. O aroma se espalhou e chegou à sala. Os fios do macarrão saltaram da travessa para os pratos. Estava delicioso e todos quiseram repetir. Menos a mãe, que achou salgado, insosso e muito duro.

O filho não se conteve: “isso sim que é uma bela macarronada” e o marido que desde a visita de Giovana não estava satisfeito com o comportamento da mulher aproveitou: “pega a receita com ela, querida. Vai fazer sucesso aos domingos”.

A mulher engoliu a fúria e fingiu um sorriso.

— Mas foi você mesma quem fez, querida ou comprou em um desses empóritos aqui do centro? Dizem que alguns são muito bons.. — desdenhou.
— Eu aprendi a receita com a minha mãe, que sempre dizia: na hora de preparar um prato, deixe a raiva do lado de fora.

E o pai que girava o garfo no prato, como um autêntico italiano, encheu a boca para para não gargalhar. Mas estava se divertindo com o embate, no qual a esposa — que nem respirava mais e estava prestes a explodir de ódio — estava levando a pior.

Após o café — preparado na prensa francesa, emprestada pelo signore Vittorino — despediram-se satisfeitos. A mãe atravessou a porta e se pudesse, ao sair, teria cuspido no chão. E ao chegar ao térreo teve que enfrentar todos os moradores, que aguardavam ansiosos por ela, na portaria. Queriam ver de perto a cara da mãe do rapaz…

Menina maravilhosa — ouviu de um morador. Seu filho é um menino de sorte — ouviu de outro. O pai, satisfeito, concordava e o filho dobrava de tamanho. A mãe fingia um sorriso enquanto tramava um meio de expulsar a vil criatura do universo. Com o seu filho, lindo e talentoso, o melhor dos três, aquela coisinha não ficaria. Nem que ela tivesse que cometer um crime bárbaro e enquanto caminhava em direção ao carro, imaginava a manchete do jornal no dia seguinte…

Agosto [entre tantas coisas] é o mês do B.E.B.A
e eu terei companhia nessa aventura diária:
Mariana Gouveia – Obdúlio Nunes Ortega – Suzana Martins
Darlene Regina – Mãe Literatura – Alê Helga – Roseli Pedroso

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

5 comentários em “Conto Sete Pecados  | com pasta fere, com pasta será ferido…

  1. Só para ficar registrado: decreto que assim que eu comprar a passagem para São Paulo, com direção ao bairro com ruas com nomes de pássaros, a senhora está intimidada a preparar o molho para eu ser ferida por essa pasta. ok?
    E que se revogue todas as disposições em contrário.
    Edita-se.
    Publica-se.

  2. Mamma mia que texto estupendo!!! Senti o aroma de azedume de longe e também o perfume das especiarias feitas com inteligência, delicadeza e amor. Só podia dar numa pasta dos deuses! Esse eu quero provar!

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)

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