52 — A alegria é um aroma de tangerina na ponta dos dedos

Lizziê,

Sai para caminhar ruas… antes de o dia se exibir com suas cores por cima dos prédios do lugar em que vivo. Sem destino, como eu gosto e prefiro. Hoje era dia de feira no bairro. Todos os movimentos começam mais cedo. Os caminhões se aglomeram ao longo da alameda e as caixas saltam de mãos em mãos. A rua rotineiramente vazia vai ganhando cores e muitos sons. Vez ou outra uma garrafa de café passeia de mãos em mãos, deixando copos bem cheios… e um grupo se reúne para uma prosa de minutos. Estranhos que são parte da minha história cotidiana-urbana-recente.

Dobrei a esquina e o bairro voltei a normalidade corriqueira de ruas vazias. Um cão surgiu no meio do quarteirão  — todo faceiro — em busca de um canto para rodar e rodar até encontrar uma posição de conforto. O humano veio pouco depois, com passos lentos e a preguiça de um despertar preguiçoso. Gosto de ver figuras humanas amontoadas em seus conjuntos de músculos e nervos. Se parecem mais com os personagens do livros que da realidade que habitam.

Cheguei ao final da rua e me deparei com uma linda árvore florida… e seu cheiro me remetei a outras paisagens. Não faço idéia para onde fui levada-sugada-tragada. Pensei em fotografá-la para depois. Às memórias tem o seu próprio tempo-ritmo. São regidas pelo mesmo signore que eu. Evoé. Eu queria saber o destino que o cheiro da flor escolheu.

Depois de um clique feito com o celular… segui com a caminhada e, de repente, minha memória replica o som. Senti um arrepio na pele, como se uma brisa fria sacudisse todo o meu corpo. Mesa da cozinha e o ritual das chegadas. C., passava pelo florista e trazia maços de flores embrulhados em jornal. Em cima da mesa, eram abertos, separados e os talos cortados para caberem nos vasos, que ela espalhava pelos cômodos da casa ao som de suas músicas favoritas.

O meu sorriso contagia uma senhora que caminha suas manhãs. Trocamos um sonoro bom dia e sigo embalada. Caminho mais leve, com as mãos enfiadas nos bolsos da calça. Penso nas missivas que não foram escritas e em envelopes que seguem esperando por um destino. Penso em você e nos seus caminhos….

Outro cheio surge no ar… bolo de fubá. Estico o nariz no ar, como fazem os cães, farejando o aroma que resulta de uma mistura comum: ovos, açúcar, manteiga, leite e fubá… batidos até a massa mudar de cor e textura. Lembro que hoje é domingo e é dia de bolo por aqui e eu prometi fazer um de limão sciliano com iogurte.

Recordo revistas empilhadas em cima do baú. Li em uma delas que os cheiros são uma máquina do tempo de sensações. Gostei da frase e guardei. Acho fascinante. A casa do mio nonno tinha vários cheiros. Mas o que ficou em mim, foi o de madeira. E eu o sinto nos mais variados lugares, por onde passo, como um sopro que rompe distâncias fronterissas.

No último dia em que lá estive, depois que venderam tudo e entregaram as chaves, tinha um forte odor de coisa guardada, vivendo em silêncio. Madeira envelhecida, paredes esquecidas, móveis empoeirados. Sei que não me esquecerei da sensação que atracou em minha pele. Fui percorrendo os cômodos um a um… passei pela sala, o quarto menor e os maiores. O enorme banheiro com a pia de louça importada e o vaso francês — o nonno fazia piadas a esse respeito e gargalhava. Fui desmoronando. Os vazios em mim se multiplicaram e eu tive uma forte crise de choro ao chegar na varanda, para onde corri.

Eu sempre soube que eu era uma casa-corpo vazia, inabitada. Mas, naquele dia, foi pior… e eu desejei que a casa implodisse as minhas costas.

Às vezes, penso que me esqueci de todas essas coisas. Mas, um cheiro salta no ar e as lembranças todas, engatadas, como vagões presos a locomotiva que sou, apitam em resposta. Como o cheiro de bolo de fubá que me pega pela mão e me leva para casa. Fim de tarde chuvoso, xícaras à mesa e o bolo no forno. Um momento, uma cena que se repete há anos: mudam apenas as pessoas e os cenários…

Outra lembrança salta lá de dentro e eu ouço as gargalhadas na cozinha. Cinco ou seis pessoas da mesma família. É o último dia de férias daquelas criaturas incríveis. Prometem que estarão de volta no ano seguinte. Brindam os dias passados-presentes-e-futuros. Não sabem que é a última vez que se reúnem. Se soubessem… ouso dizer que nada mudariam. Repetiriam as mesmas falas e beberiam gole a gole o chá preparado pela manhã. Eram felizes em seus encontros anuais.

Olhando daqui… Parece que o tempo fez uma pausa… ninguém cresceu-viveu-morreu. Estão todos por lá… a gargalhar suas realidades extintas. Eu gostava imenso de espiar aquelas pessoas que eram o meu mundo e, de certa forma, eu era o mundo delas. A maioria se foi… alguns estão por aí. Outros ficaram nos dias de ontem…

Ficaram os cheiros daquela tarde, um aroma agridoce… que me faz perceber que a eternidade é isso, um jeito agradável de nunca esquecer… A vida sempre encontra um meio ou será que encontra um cheiro?

Au revoir

Agosto [entre tantas coisas] é o mês do B.E.B.A
e eu terei companhia nessa aventura diária:
Mariana Gouveia – Obdúlio Nunes Ortega – Suzana Martins
Darlene Regina – Mãe Literatura – Alê Helga – Roseli Pedroso

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

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