Cara mia,
Despertei há pouco, por volta das quatro horas de uma madrugada escura. Não me lembrava de ter adormecido… é assim quando adormeço sem a ciência de tê-lo feito. Acordo repentinamente… e dou pela casa às escuras e o corpo em suspenso. Demoro a me acostumar com as figuras em minha volta. Pareço uma sonâmbula a tropeçar pelos espaços e a apoiar-me nas paredes brancas da casa.
Água fria no rosto para concluir o despertar. Mais alguns passos… até a varanda para espiar as ruas, os prédios e ouvir o canto dos pássaros em meio aos primeiros sinais de um novo dia. Respiro fundo e sei que será um dia quente… o ar está morno e me aborreço por alguns segundos. Não sei existir em temperaturas altas…
Opto por fazer um chá… coloco a chaleira no fogo e enquanto espero (adoro esse instante) tento descobrir o que fazia antes de adormecer. Lia um livro ou assistia a um filme?
Ao perceber que estava a escrever no ar, ligo o notebook e demoro a me acostumar com a claridade da tela. Encontro restos de ontem à noite… um texto deixado na tela e o cursor a avisar que se trata de um rascunho. Era o que eu fazia… Nova leitura… e me divirto com as vontades últimas: afundar o corpo no sofá, entre as almofadas vermelhas e assistir ao capítulo escrito. O riso escapa dos meus lábios e ecoa pelo ar até ser detido-contido por mim.
Foi o que eu fiz, minha cara…
Respiro fundo e me distraio com os sons lá fora. Mendigos da noite, trôpegos e tagarelas… contam suas façanhas pautadas pelo vício para os ares e desperta um ou outro vizinho que dormia diante da tela e vai até a janela resmungar com o vento. Penso em sair para as ruas, caminhar em meio às sombras. Encontrar aquela menina que vem em minha direção — todos os dias — na mesma hora. Dá para acertar os ponteiros do dia com ela…
Preciso sabê-la um pouco mais. O olhar dela é tão rude. Seus movimentos tão incisivos — agudos. Me incomoda a maneira como leva o cigarro à boca. Parece uma agressão contra si mesma. A maneira como solta fumaça para cima dos outros. Ela é tão agressiva-indócil.
Reparei que ela é metade uma coisa e metade outra. Gosto imenso desse jogo. Uma habita a luz… outra as trevas. Ainda não a decifrei por completo. Nossos encontros entre Alamedas são ligeiros. Ela tem pressa em seus calcanhares. Está sempre atrasada para a vida e todas as coisas do mundo…
A chaleira apita e eu corro para evitar que o som agudo desperte o Marco, que ronca suas horas de sono. Enquanto despejava a água na xícara… reescrevi uma cena nas paredes do meu corpo. Ela é uma figura sombria e misteriosa que atravessa o caminho de Alexandra e a seduz com um pedido bobo: você tem um cigarro?
E você sabe como é Alexandra… uma menina recém-chegada do interior, sem vícios e trancada na própria pele. A resposta não poderia ser outra. Mas há algo na figura que atrai o olhar de Alexandra e atiça labaredas em seu íntimo.
É a partir desse mistério que flutua nas linhas de lua de papel que conduzo o personagem para outra trama. Eu gosto imenso desse rastro que fica no corpo do texto e fico satisfeita por ser capaz de ligar um ponto ao outro nos meus mapas.
Nessa semana, vou para dentro do segundo capítulo… escolhi como título o último verso do poema solombra de Cecília mas não foi fácil. Esse segundo poema é poderoso e poderia usá-lo todo. Mas só cabe um verso e escolhi: “em mãos tristes, vê-se a harpa imóvel“… Combina com Augusto, o homem alquebrado em cena…
au revoir
Setembro [entre tantas coisas] é o mês de Missivas de Primavera
e eu terei companhia nessa aventura semanal
Mariana Gouveia – Obdulio Nuñes Ortega – Roseli Pedroso – Suzana Martins
Amei!
Eu também vaguei madrugada afora no quintal… conversei por horas com a lua e por incrível que pareça, fiquei lembrando de passagens do seu Lua de Papel… essa história de estar em seu futuro acalenta minha alma e meu coração.
Amo tu imenso!
Grazie por isso ❤
Que beleza de carta, rica em tantos assuntos prazerosos.