Mais um ontem colecionável

Nove e vinte e sete.

É noite. Janela aberta. Cama desfeita. Xícara de chá em mãos. É primavera, segundo o calendário. Mas a minha alma só sabe falar-me do inverno. Ouço o som do carrilhão ressoar do ontem e a pele reage, com um arrepio que percorre toda a extensão do meu corpo. Respiro fundo. Bebo um pesado gole de chá… e sinto os passos pelo assoalho, que rangem à minha passagem. Da cozinha vem a voz sonora do nonno que cantarola suas músicas de antes de ontem. E meus lábios começam a se mover num cantarolar conjunto.

Dio, è proprio tanto che piove
E da un anno non torno
Da mezz’ora sono qui arruffato
Dentro una sala d’aspetto
Di un tram che non viene
Non essere gelosa di me
Della mia vita
Non essere gelosa di me
Non essere mai gelosa di me

Sinto falta desses momentos menores. Essas coisas que se acumulam na soleira do corpo e falam alto quando todas as outras se calam.

Olho lá para fora e a realidade acena com uma noite escura e sem lua. Volto-me para dentro e observo os livros na prateleira. O olhar escolhe o que lê e a memória onde pousar. Na última vez que estivemos juntos — não era verão. Ele pediu a minha presença e eu larguei tudo.

Comemos caldo de massa na cozinha… uma exigência minha. Um dos meus primeiros rituais. A cor e o aroma era coisa apenas minha. Eu era a primeira a chegar. Sentia os espaços todos… me certificando que tudo estava como eu me lembrava, desde a primeira vez. Fechava os olhos e tragava pesado dos cheiros daquela casa. Ouvia o ressoar do carrilhão e estremecia por inteira.

Saímos para caminhar após o jantar… Ele me falou suas histórias-primeiras. Como chegou a região e escolheu o lugar para fincar suas raízes, e ver tudo acontecer. Mostrou a árvore que plantou. Dava para ver toda a extensão de suas terras dali.

Ele recolheu um galho do chão e eu colhi uma folha, que encontrei no meio da tarde de hoje, em bom estado, dentro do livro de poesias que ele me deu, naquele dia. Ele o comprou numa pequena livraria depois de um verão-qualquer. Confidenciou que não tinha lido Eliot, mas ao ouvir a nossa conversa (Pr e eu) na mesa da cozinha, quis ler o homem inglês. Mostrou o seu poema favorito, que eu marquei com a folha, para ler nos dias seguintes aqueles e me lembrar do homem que se foi em outubro, poucos dias depois da minha visita.

A minha famiglia não foi mais a mesma. Era ele quem nos matinha unidos. O lugar foi esvaziado e vendido. Uma parte de mim morreu naquele dia… Mas renasce toda vez que a memória acena com um desses ontens colecionáveis que não se extinguem.

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

2 comentários em “Mais um ontem colecionável

  1. fiquei aqui pensando nos ontens meus… e nos dias que se avizinham. Alguns carrilhões perderam os ritmos por aqui.
    Quando tu fala do tuo nonno eu penso em meu pai.
    Acho que as estações nos unem.
    grazie por isso!

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