A Casa de Alices

Na noite de ontem, participei de uma palestra para mulheres em um novo espaço. Foi um convite que não pude recusar. A Casa é para mulheres vítimas de maus tratos na periferia paulistana e algumas estão destruídas por dentro, outras apenas por fora, com marcas que desaparecerão em breve.

Levei Alice comigo e uma ideia que durou poucos minutos. O diálogo fluiu naturalmente. Todas queriam compartilhar da alegria que é escrever a partir de suas emoções. Tarefa nada fácil que elas estavam disposta a praticar. Um caminho para abordar o horror que é ser uma vítima…

Uma delas, quase sem voz, quis saber: o que te fez escrever histórias? Voltei no tempo… A minha infância de novo — esse porto para todas as minhas viagens. Lembrei que eu estava na cozinha com a nonna. Ela misturava ingredientes na sua vasilha de vidro azul. E eu quis saber dela: o que faz uma pessoa contar histórias?

O nonno era um dos melhores nesse tema. Todo almoço de domingo terminava com ele narrando suas lembranças. Ele as escolhia como quem pega uma carta após embaralhá-las.

A nonna não parou o que estava fazendo, mas esticou o olhar para me observar por alguns segundos e depois de sorrir a sua vida inteira, respondeu. Para não deixar se perder tudo que sou e para que outras pessoas saibam que é possível viver. Eu escolho uma lembrança e a melhoro ou pioro de acordo com o momento e com a pessoa com quem divido minha existência.

Fiquei algum tempo a pensar nisso… vi os ingredientes virarem uma massa, que foi sovada e separada em pequenos gomos… abertos e recheados. E ao perceber a minha inquietação, ela quis saber: “que história você gostaria de contar, para mim?”

Arregalei os olhos. levantei a sobrancelha, respirei fundo. Vasculhei minhas lembranças poucas e nada encontrei. Era tão pequena e tudo começava a se erguer ao meu redor. O que sabia eu da vida, do mundo? Não tinha uma história para contar. Se eu morresse naquele minuto, tudo estaria perdido. Respirei fundo, exibi um sorriso bobo e pensei: quero te contar uma história que ainda não aconteceu. A de uma menina que descobriu que pode inventar o seu próprio mundo.

E a nonna se pôs a ouvir aquela história curta, infantil — quase uma lenda celta. E quando reparei que ela estava com os olhos cheios, quis saber o motivo. E ela disse: todas as minhas histórias continuam em você e vão te ajudar a erguer esse mundo e talvez, o de outras mulheres que souberem da história dessa menina…

Claro que eu me emocionei ao contar essa história e precisei de ar. Ganhei um abraço da mulher que estava ao meu lado e que havia me convidado. Ela havia lido Lua de Papel. Vinda do interior de Minas, havia se identificado com Alexandra. E depois leu Vermelho por dentro e Alice — o motivo do convite. Mas ninguém ali queria comentar a personagem e sua história, porque era um eco de suas vidas e doía saber o desfecho. Uma delas, disse: queria que ela estivesse aqui, para que pudéssemos ajudá-la. Mas a outra foi enfática. Não! Ela não estaria aqui. Ela esta no lugar em que não queremos estar…

E eu segurei a mão das duas… enquanto agradecia a nonna.

Publicado por Lunna Guedes

Sou sagitariana. Editora de livros artesanais. Autora de romances. Degustadora de café. Uma típica observadora de pássaros, paisagens, pessoas e lugares. Tenho fases como a lua... sendo a minguante a minha preferida!

2 comentários em “A Casa de Alices

  1. Salve as nossas nonnas, nossas abuelas que souberam noss escutar e também nos incentivar com suas memórias! Encantamento que mora na gente: “E a nonna se pôs a ouvir aquela história curta, infantil — quase uma lenda celta. E quando reparei que ela estava com os olhos cheios, quis saber o motivo. E ela disse: todas as minhas histórias continuam em você e vão te ajudar a erguer esse mundo e talvez, o de outras mulheres que souberem da história dessa menina…”

  2. Eu já te contei que vivi essa mesma sensação com Alice, no grupo que dou aulas de artesanato.
    Confesso que todas as vezes que volto de lá venho revigorada. Mas meus olhos marejaram com seu texto. sinto que abracei tua nonna e ela me abraçou de volta.
    Grazie tanto!

Pronto para o diálogo? Eu estou (sempre)

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