Sai para caminhar com o cão e me deparei com um signore levando uma criança — sua neta, penso eu — para um passeio matinal. Senti pincelar a pele com um dourado aquecido-gostoso e quase me esqueci que havia chovido a noite toda.
Eu fui uma criança quieta — segundo as minhas lendas pessoais e eu tenho algumas porque a minha memória não alcança certos dias e eu dependo das narrativas alheias. Algumas são confiáveis, enquanto outras são folclóricas.
Eu soube — de fonte segura — que eu não demonstrava interesse ou vocação para traquinagens ou barulhos agudos. Disseram que eu levava as mãos às orelhas, tapando-as para conter os ruídos que tanto me incomodavam. Eu não gostava de me misturar aos bandos. E toda vez que era levada à praça para brincar, demonstrava qualquer coisa de aborrecimento.
Eu me lembro de não gostar de ficar no meio das outras crianças, preferindo o canto oposto, de onde eu podia observá-las — como hamster a se exercitar em suas gaiolas particulares.
Não tolerava gritaria e correrias — era considerada uma criatura estranha e gostava imenso dessa definição.
Embora eu demonstrasse agilidade para subir em árvores, escalar muros e mergulhar em rios. Não gostava de testemunhas. Eu tinha imenso prazer em ser-estar sozinha… vagando pela pelos cômodos de uma casa vazia, me misturando à mobília.
E foi na infância que desenvolvi a paixão pela primeira vez. O primeiro brinquedo, que foi um tabuleiro de xadrez, feito pelo nonno — inclusive as peças. E o meu primeiro caderno, que me deixou muda-imóvel durante dias. O primeiro livro… de poesias — cinquenta e seis páginas preenchidas com versos num idioma novo. O primeiro envelope — vermelho. E a primeira missiva que trazia notícias do meu primeiro amigo. E teve o meu primeiro baú, feito pelo nonno. A primeira viagem de trem com as janelas a narrar o passado-presente-e-o-futuro em meu olhar anestesiado. A primeira tempestade, que ainda reverbera em meu corpo.
Somo a tudo isso… a primeira vez que o Marco veio em minha direção, com seus passos lentos e aquele gesto tão meu: as mãos guardadas dentro do bolso da calça jeans. A primeira vez que engatou as mãos para um passeio por calçadas irregulares do Bixiga. Eu achei graça do gesto protetor ao andar, do lado de fora da calçada… coisa do mio babo e do nonno... da minha infância.
Essas são as somas que eu coleciono. Não sei dizer em que ano-momento aconteceram. Mas sei o valor-sentido-significado de cada uma. As outras somas-humanas… horas-dias-meses-anos me deixam confusa-perdida porque lá na infância, eu usava os dedos para fazer todas essas contas-tolas e achava impossível calcular o que exigisse mais dedos do que os que eu tinha.
Quando o nonno me disse a sua idade. Eu arregalei os olhos e fiquei lá, a espiá-lo… E como ele era um gigante — perto de mim. Para conversar comigo, ele me colocava sentada em seu colo. Era a melhor maneira de nivelar a nossa altura porque ele gostava de conversar olhando no fundo dos meus olhos.
Lembro que fiquei com as duas mãos espalmadas no ar tentando encaixar os tais oitenta e três anos. Os dedos das minhas mãos não colaboraram. E ele se divertiu com as minhas tentativas.
Eu sabia somar-dividir-multiplicar-subtrair e fazer vários outros cálculos matemáticos. Mas não conseguia fazer a soma dos anos amontoados na pele do mio nonno. E tive uma maluca. Citei o ano do meu nascimento e ele gargalhou gostoso. Fiquei furiosa. Cruzei os braços à frente do corpo e aborrecida, pedi para que me ajudasse a entender o tempo. Foi quando ele me disse com sua voz de homem velho e sábio: “continue assim, bambina. Não se renda ao tempo; deixe que ele se renda a você. Tem somas muito mais interessantes e importantes para se fazer na vida”.